Em 1930 o famoso economista John Maynard Keynes fez a seguinte previsão. Por conta do avanço da tecnologia, em 100 anos a humanidade produziria bens de forma tão eficiente e barata que todas as nossas necessidades por bens materiais seriam facilmente satisfeitas. Assim, os trabalhadores do século XXI precisariam trabalhar apenas 15h por semana (3h por dia) para suprir suas necessidades de consumo e dedicar o restante do tempo para o lazer.
O problema é que 2030 está logo aí, mas claramente estamos longe de viver numa sociedade com uma carga de trabalho tão pequena. O mais curioso é ver que mesmo a parcela mais rica da população continua dedicando pelo menos 40h semanais ao trabalho.
Mas onde foi que Keynes errou? Será que ele superestimou a produção de bens materiais?
Na verdade não. A produção de bens materiais realmente cresceu de forma exponencial. Um brasileiro médio hoje vive com muito mais conforto material do que os reis e rainhas do século XIX. Quem lê o livro “1808”, provavelmente fica chocado ao perceber como as condições de vida da família real portuguesa eram precárias. O acesso à informação e, consequentemente à educação, era extremamente limitado e até mesmo questões básicas de saúde, como esgoto encanado, não existiam no palácio real.
O erro de Keynes foi subestimar o tamanho do desejo humano por bens materiais. Nós somos seres insaciáveis, sempre em busca de prazeres que trazem uma grande alegria. Só que a alegria comprada é, infelizmente, temporária.
Consumo notável e adaptação hedônica
Uma das explicações para isso vem do conceito de consumo notável, que é quando a gente compra bens para ganhar status social. O problema com esse tipo de consumo é que a economia pode crescer infinitamente, mas o número de iterações sociais é limitado. Nossos instintos nos aprisionaram num jogo de busca por status que leva a uma corrida de ratos por consumo. A corrida de ratos funciona mais ou menos assim: um jovem sonha em comprar um carro para impressionar os amigos e as possíveis parceiras sexuais, só que quando ele finalmente compra o carro dos sonhos, o ganho de status é temporário porque um dos amigos logo em seguida compra um carro ainda melhor. E o jogo segue de maneira infinita. Esse jogo não acaba nem mesmo quando todos os amigos se endividam e trabalham que nem uns loucos para finalmente comprar um Porsche, porque aí algum espertinho compra um barco e o jogo recomeça.
O mais curioso é que existem sociedades contemporâneas que poderia provar que Keynes estava certo. Essas sociedades vivem como caçadores-coletores nos dias de hoje e trabalham cerca de 15h a 20h por semana. Isso sugere que o fim da vida nômade provavelmente explica porque a gente ainda trabalha tanto.
A competição por status aumentou quando começamos a viver rodeado de pessoas. E tomou proporções gigantescas com a vida moderna, quando conseguimos compartilhar nossa última compra com centenas de pessoas ao mesmo tempo através das redes sociais. Antes das redes sociais bastava ter um vestido de festa deslumbrante e você podia usar o mesmo em festas diferentes. Ainda que os convidados fossem os mesmos, as pessoas tinham coisas mais úteis para armazenar na mente delas do que o vestido que você usou na última festa, então dava para repetir. Mas com as redes sociais basta um pequeno esforço de pesquisa para os outros verificarem que você repetiu de roupa.
Você pode até tentar lutar contra essa necessidade de consumo notável. Mas aí você precisa driblar outra tendência natural, conhecida pelo nome de adaptação hedônica. Essa é uma tendência comum nos seres humanos de voltar ao mesmo nível de felicidade logo após acontecimentos importantes que mudam a nossa vida. O que é ótimo porque vale para acontecimentos bons e ruins. Assim, mesmo uma pessoa que passou por uma dificuldade severa, como se tornar um deficiente físico, pode voltar ao mesmo nível de contentamento algum tempo depois do acidente. É realmente um mecanismo maravilhoso do nosso cérebro.
O problema com a adaptação hedônica é que ela também nos prende numa corrida de ratos. Você provavelmente já passou por isso. Você vai ao shopping e vê uma roupa maravilhosa. Experimenta e fica perfeita, principalmente porque os provadores costumam ter luzes e espelhos mágicos que te deixam mais bonito e mais magro. Vai para casa achando que agora você finalmente vai se sentir feliz com o seu guarda roupa. Mas basta usar aquela roupa algumas vezes e de repente ela passa a ser normal para você. Você volta a sentir que não tem nada de deslumbrante no seu armário. Que você só precisa comprar mais uma peça de roupa e aí sim vai ser feliz.
O consumo notável e adaptação hedônica são os motivos por trás da triste verdade que mais consumo não significa mais felicidade, e explicam porque Keynes errou. Se você já tem casa, comida e roupa lavada, nada mais vai te trazer uma felicidade duradoura. Você pode tentar viajar para um novo destino exótico, comprar aquela bolsa de luxo ou o carro que vem sonhando há anos. Mas passado alguns poucos dias (é realmente muito temporário), você volta ao mesmo nível de contentamento anterior.
Vivendo a adaptação hedônica na prática
O melhor exemplo de adaptação hedônica que eu vivi foi durante o meu ano sabático. Quando eu e meu marido éramos empregados, a gente tinha direito a apenas 30 dias de férias por ano. Era menos de 10% do ano que a gente tinha livre para viver como gostaríamos. E o que a gente fazia? A gente sempre viajava. Eu não passei um dia sequer das minhas férias em São Paulo.
Essas viagens eram raras, apenas duas vezes por ano. E eram férias também, o que significava que além de estar viajando, a gente não precisava se preocupar com prazos de entrega, clientes e chefes. Nós éramos tão felizes nesses pequenos 30 dias de férias. Eu fazia questão de tirar fotos para registrar cada momento e cada lugar desses 30 dias tão preciosos. E quando a gente voltava para a rotina de trabalho, sempre revisitava essas fotos para lembrar da alegria daqueles poucos dias.
Então é claro que chegamos a conclusão de que a gente amava viajar. E que deveríamos organizar as nossas vidas para que a gente fizesse isso mais vezes. Foi assim que organizamos nossas finanças e partimos para uma viagem de 1 ano.
Quando começou a viagem, a alergia era imensa. Eu saí do trabalho e em menos de um mês já estava na estrada. Então sentia um misto de liberdade por estar sem trabalho e de empolgação por finalmente ter tempo para viajar para todos os lugares que eu queria. Eu estava tão animada que tive certeza que tinha encontrado o segredo da felicidade. Logo nos primeiros meses da viagem eu falei para o meu marido “por que não está todo mundo fazendo isso?”.
Mas era óbvio que a gente não tinha encontrado o segredo da felicidade. Depois de meses no litoral, a gente enjoou das praias. Chegávamos às praias mais paradisíacas da Bahia e pensávamos sem muita animação “é só mais uma praia cheia de coqueiros, mar de águas quentes e areia branquinha”. Decidimos ir para o interior do país, fazer trilhas e visitar as cachoeiras mais incríveis do país. Mas passado alguns meses disso, nós também enjoamos. Os banhos gelados de cachoeira já nem eram mais tão refrescantes assim depois de um tempo.
O que eu vivi durante o meu sabático foi a adaptação hedônica na prática. Depois de algum tempo viajando, eu voltei ao meu grau de felicidade pré-sabático. E percebi eu amava não apenas viajar, mas sim sair da rotina. Quando eu trabalhava, eram raros os dias que eu podia viajar, então eu dava muito valor a eles. Mas quando a viagem passou a ser minha rotina, eu perdi a sensação de alegria muito intensa por estar viajando.
Como viver em paz com nossos instintos consumistas
Resistir ao nosso instinto de consumo notável é difícil. E o dispositivo de adaptação hedônica (que já vem instalado em todos nós) torna tudo mais complicado. Mas não precisamos ser super humanos. Ceder aos nossos instintos é normal, e a gente vai sim fazer compras por impulso em algum momento na vida. O importante é não deixar se aprisionar numa vida que te faça infeliz.
Embora comprar coisas não seja o segredo da felicidade, consumo em excesso pode sim te trazer infelicidade. Para manter o padrão de consumo, você pode se ver obrigado a aturar um chefe abusivo, ter noites mal dormidas por conta da dívida no cartão de crédito e viver ansioso pelo medo de não conseguir pagar as contas no final do mês. Existem sim pessoas que são compulsivas por consumo e é uma realidade bem mais triste do que a versão hollywoodiana dos “Delírios de Consumo de Beck Boom”.
Então é importante aprender a viver em paz com os nossos instintos sem se aprisionar numa vida infeliz. Abaixo eu listo uma série de dicas para isso:
- Tenha luxos pontuais. Se você estiver precisando de uma dose única de alegria, então tudo bem comprar algum luxo. Fazer uma viagem incrível de vez em quando, ir jantar fora uma vez por mês, ter um (e apenas UM) item de luxo que te ajude a se sentir menos looser no jogo por status social. Mas fique atento. Se esse item de luxo não te faz mais feliz, venda antes de comprar um novo. Assim pelo menos você recupera uma parte do dinheiro gasto nesse consumo notável e fica menos preso na corrida de ratos;
- Mantenha apenas três gastos recorrentes que te façam bem. Adoro a frase da Paula Pant que diz “você pode comprar qualquer coisa, mas não todas as coisas”. Se você ama frequentar uma academia top de linha, então não faz sentido manter uma conta de TV à cabo que te aprisiona ao sofá. Se você ama viajar, então aprenda a cozinhar e vá menos a restaurantes. Assim você sente que não está levando uma vida de privação, mas sim priorizando aquilo que te faz feliz (mesmo que seja uma alegria temporária!);
- Use as redes sociais com consciência. Quando for postar, pense antes “estou fazendo isso para registrar um momento especial para mim ou para ganhar status social com os outros?”. Se for pelo segundo motivo, você corre o risco de entrar numa corrida de ratos do tipo vestido-novo-a-cada-festa.
- Viva rodeado de amigos que procuram outras coisas em você além das suas posses materiais. Existem diversas formas de você ganhar status social. Você pode ser um bom ouvinte, pode ser uma pessoa divertida e agradável, pode ser alguém confiável. Sem dúvidas você consegue reconhecer os amigos que apreciam sua presença mesmo que você chegue suado porque pedalou até a casa deles (claro, desde que use um bom desodorante!). Valorize esses amigos!
- Independência financeira é também uma forma de ganhar status social. Acredite, muita gente vai te admirar por ter conquistado isso. Na próxima vez que você se sentir impelido a fazer uma compra, pense bem se não prefere comprar algo muito melhor com aquele dinheiro: a sua liberdade!
12 respostas
Concordo com os pontos colocados no post e aproveito para compartilhar um artigo interessante que aborda esse tema também:
https://www.theatlantic.com/magazine/archive/2022/03/why-we-are-never-satisfied-happiness/621304/
Adorei esse artigo! Obrigada pela referência!
Oi Elsa, eu não conhecia o termo “adaptação hedônica”, mas já tinha percebido que o efeito positivo de fazer compras dura muito pouco mesmo… Acontece a mesma coisa com as crianças quando ganham um brinquedo novo. Ele é fantástico nos primeiros 15 mins. Depois ele perde a graça e vai para o armário, junto com os outros brinquedos. É interessante que isso não acontece quando investimos em experiências. Quando olhamos fotos de viagens, sempre lembramos dos bons momentos que passamos. Esses momentos ficam para sempre! Inclusive, temos a tendência de esquecer as “partes ruins” e lembrarmos só das “partes boas” das viagens. Ou seja, essas lembranças ficam melhores com o tempo… Gostei também da sua experiência com viagens mais longas. Parece um sonho viajar indefinidamente, mas depois deum tempo passa a ser a nova rotina…
Acho que a grande vantagem da liberdade financeira é a liberdade de sair da rotina quando quiser, qualquer que seja ela. Não é?
Oi Fernando!
Eu também adoro analisar a atitude das crianças quando elas ganham um presente. Elas são muito mais instintivas que os adultos e mostram bem esse comportamento de enjoar logo das coisas. Nem tentam fingir que foi uma boa compra!
Uma vez eu li que viagens não são consumo e sim investimentos, porque você colhe dividendos positivos dessas experiências no futuro quando tem boas lembranças e boas histórias para contar. Ainda assim, eu tenho ficado cada vez mais atenta com experiências “únicas e indispensáveis” na nossa vida. Esse setor tem investido cada vez mais em marketing e nos levam a pensar que a viagem dos sonhos tem que ter muito luxo. Já ouvi muita gente falando que “trabalha para gastar nas férias”, o que não faz o menor sentido!
Quanto a rotina, é isso mesmo. Se você ler livros sobre felicidade, você descobre que precisa de tempo para se dedicar as pessoas que ama. Se lê livros sobre saúde, descobre que precisa de tempo para praticar atividade física e cozinhar seu próprio alimento. Se lê livros de produtividade, descobre que precisa do ócio criativo. Ou seja, a gente precisa de tempo mais do que dinheiro (depois de passado um certo limite de pobreza!). A liberdade financeira compra, acima de tudo, tempo!
Ahhh como é bom ver vida inteligente na internet…
Ótimas reflexões!
Obrigada ;)
Teu artigo me lembrou da famosa dica para economizar. Quando você estiver muito ansioso para comprar alguma coisa, pare e espere por 1 semana ou mais. Se a euforia passar, você provavelmente não precisava tanto assim daquela coisa e verá que sua vida não mudaria tanto com aquilo. Portanto, poderia ser um dinheiro gasto muitas vezes para ter uma alegria temporária (e bem rápida por sinal). Quem nunca passou por isso, né?
Excelente artigo! Conheci seu blog agora e fiquei muito feliz por isso.
Feliz 2023 pra você!
AMC
Oi AMC!
Essa dica de esperar para consumir é muito valiosa. Eu costumo ter uma lista de coisas que gostaria de comprar com a data ao lado de quando surgiu esse desejo de consumo. Se depois de 3 meses esse item ainda estiver na lista, aí significa que é algo que eu realmente gostaria de ter. Ajuda muito a evitar a famosa compra por impulso que gera uma alegria extremamente temporária!
Feliz 2023 para você também!
” a apenas 30 dias de férias por ano” ???? Experimente viver aqui nos EUA onde tenho 5 dias úteis por ano, NÃO REMUNERADOS e vc vai reformular esta frase.
30 dias por ano beira ao absurdo. 1/12 do ano perdido e ainda a empresa remunera…claro que o Brasil está assim, e ainda nego reclama…tá louco!
O texto reflete a experiência dela no contexto do Brasil.
A provocação é exatamente essa! Faz sentido viver com 5 dias úteis de férias por ano? Se isso não está soando razoável pra você vale a reflexão de como mudar isso!
A maioria das pessoas está presa na corrida de ratos. Trabalhando absurdamente, exausto, comprando bens materiais para satisfazer necessidades momentâneas, vivendo na boiada. A maioria de nós já caiu nessa ou ainda está preso nisso. Achei o texto Algemas de Ouro super interessante também, acho que vale a leitura. https://aposentadaaostrinta.com.br/algemas-de-ouro/
Exatamente Fabi! Nós estamos tão acostumados com o trabalho tomando todo nosso tempo de vida, que julgamos que férias é cosia de preguiçoso.
Que bom que gostou do texto Algemas de Ouro. Ele é um ótimo complemento para esse texto!