Vidas em excesso

Quando eu estava em Paris, tive uma intoxicação alimentar braba. Depois de meses me divertindo com queijos, baguetes e vinhos franceses, meu corpo parece que finalmente decidiu dar um basta à minha farra sem limites de gordura e álcool, me colocando de quarentena por alguns dias. Eu estava consumindo em excesso.

Vivi por anos uma rotina que dava pouco espaço para os prazeres da vida. De segunda a sexta, eu só tinha tempo para o trabalho e mal podia pensar em sair durante a semana. Eu me sentia tão exausta com a rotina que tudo que queria depois do trabalho era a minha cama.

Até que me aposentei e decidi me jogar nos prazeres da vida. Passei a topar qualquer convite para sair durante a semana, o que normalmente envolvia álcool e fritura. E atingi o auge do hedonismo nos meus dias parisienses.

Quando em Paris, recebemos muitos amigos que estavam de férias na cidade. Só que para eles eram apenas alguns dias de queijos e vinhos, enquanto para mim essa vida durou três meses.

Voltei de Paris com a sensação de que minha vida tinha ido de um extremo ao outro. Se antes eu trabalhava em excesso, agora estava me divertindo em excesso. E comendo e bebendo em excesso. E, talvez, até viajando em excesso.

É como um pêndulo, que quando soltamos de uma extremidade vai com toda velocidade para outra, até reduzir o ritmo e finalmente encontrar o equilíbrio.

Acredito que ainda não encontrei o equilíbrio perfeito entre os deveres e os prazeres na vida FIRE. A vida em que tenho o suficiente dos dois, e nada em excesso.

Mas será que é possível atingir isso?

Excesso x Suficiente

A resposta para minha pergunta anterior é sim.

Por experiência própria, afinal, eu acredito ter atingido o equilíbrio quando o assunto é dinheiro.

Entre pessoas que vivem com escassez e pessoas que vivem com excessos, posso dizer, felizmente, que acredito ter o suficiente.

Mas nem sempre foi assim.

Quando comecei a trabalhar, ganhava um salário de R$7 mil como analista pleno de um banco. Lembro de achar essa quantia uma fortuna. Morava com meu pai, então as contas básicas de moradia e alimentação eram por conta dele. A mim, cabia apenas arcar com meu cartão de crédito. E bem, com essa quantia 10 anos atrás, eu fazia uma bela farra com compras no cartão. Sentia-me rica.

Até que conheci um colega de trabalho que tinha conta no Private. Na época, você precisava ter uma fortuna de R$3 milhões para poder ter conta no Private.

Lembro de sentir uma punhalada no peito quando soube disso. Ele era apenas alguns anos mais velho que eu, tinha sim um cargo muito superior ao meu, mas nunca imaginei que alguém tão jovem quanto ele pudesse ter tanto. Na comparação com ele, meu salário, que até então achava bom, passou a parecer insuficiente. Ele era rico e eu era pobre.

Dizem que um dos problemas das redes sociais é que estamos sempre comparando nosso interior com o exterior das pessoas. Só que eu acredito que esse não é só um problema das redes, mas da vida real. As coisas nunca são só o que parecem. E normalmente, vemos só o que está na superfície dos outros. Enquanto vivemos a nossa própria vida na mais pura profundidade.

Conforme os anos foram passando, fui sendo promovida, mudei de emprego e dediquei-me à minha carreira. E o salário foi crescendo junto. E então, juntar R$3 milhões já não parecia assim tão impossível.

Mas estava exausta. Minha vida era meu trabalho no mercado financeiro. As férias se tornavam cada vez mais escassas, principalmente porque estava sempre mudando de emprego para ganhar mais e com isso perdia o direito a férias por um ano. Conforme fui subindo de cargo, os finais de semana deixaram de ser livres de preocupação com o trabalho. E conforme minhas responsabilidades aumentavam, não eram poucas as noites de sono prejudicadas por conta da ansiedade de reuniões importantes.

E alguns anos depois, reencontrei meu ex-colega que tinha conta no Private, e ele me disse que estava lutando contra um câncer. Ele ainda não tinha 40 anos de idade. Conversamos por um tempo e ele disse que estava otimista. Que finalmente tinha percebido o quanto custaram os anos em que trabalhou em excesso e negligenciou os cuidados com a própria saúde. É claro que é impossível saber o quanto o câncer estava relacionado ao estilo de vida dele, mas ainda assim, estava feliz por ter tido esse alerta. E que eu, que era mais nova do que ele, deveria aprender a ter um equilíbrio melhor na vida. Que a vida não era só trabalho.

Esse dia, meu ex-colega me deu um presente de mostrar a sua vida de uma forma mais profunda. E eu o enxerguei além da superficialidade.

Por que somos tão estimulados aos excessos?

Somos seres influenciáveis. E não é à toa que influencer é uma profissão rentável. E embora essa denominação seja nova, a profissão é bem antiga.

O poder do marketing é o que sustenta o sistema capitalista atual. E vencemos a escravidão (graças!) não porque as pessoas são boazinhas, mas sim porque percebemos que pagar um salário e influenciar as pessoas ao consumo era uma maneira muito melhor de gerar mais riqueza. E tem sido assim por muitos anos.

Quando vemos alguém bem-sucedido (uma atriz, um cantor, um influencer com muitos seguidores nas redes sociais), nós automaticamente acreditamos que se tivermos as mesmas coisas que ele, nós também vamos parecer bem-sucedidos aos olhos superficiais.

E essa é uma relação de mão dupla. Quando vemos alguém consumindo muito, tendemos a acreditar que essa pessoa é muito bem-sucedida em tudo na vida.

Nossa mente é altamente sugestionável por essa proxy. Não enxergamos o dinheiro apenas como um mecanismo de simplificação de trocas. Enxergamos o dinheiro como medida de sucesso.

E quando o assunto é sucesso, quanto mais, melhor.

Treinando a mente a pensar em golfinhos

Quando reencontrei meu ex-colega rico, eu já estava na minha trajetória rumo ao FIRE. Então a nossa conversa só ajudou a reforçar que esse era o caminho que eu queria.

Mas a vida dava seus testes. Nem sempre era fácil acreditar que viver uma vida frugal e me aposentar cedo era a melhor decisão. E confesso, sofro testes assim até hoje. Mas desenvolvi um mecanismo útil para esses casos.

Esse mecanismo eu aprendi quando um ex-chefe convidou a equipe para jantar na casa dele. A equipe tinha só 3 pessoas, além dele. Quando chegamos ao seu apartamento, me deparei com uma sala impecável do tipo capa da revista Casa Vogue (que mais tarde descobri que foi de fato parar numa revista famosa de casas). Fomos recebidos com Champagne e ele contratou um serviço de catering para o jantar. O jantar teve entrada, prato de massa, prato de carne e sobremesa. Cada prato era servido na mesa pelo chef contratado, que explicava minuciosamente o prato. E o meu chefe fazia questão de abrir uma garrafa de vinho nova a cada prato, para garantir a harmonização perfeita. Quando eu já não aguentava mais beber vinho e fiz um sinal para que ele não enchesse a minha taça de novo, ele disse: “se você soubesse o quanto custa esse vinho…”.

Demorei para entender o que estava acontecendo nesse jantar. Não parecia que era só um chefe querendo agradar seus subordinados. Parecia uma exibição de um estilo de vida luxuoso e de como ele era bem-sucedido. Com um toque de querer nos influenciar a seguir os seus passos. A mensagem que ele queria passar era do tipo “se vocês se esforçarem bastante trabalhando para mim, quem sabe um dia estarão no meu lugar também”.

A sorte é que na mesma semana eu tinha lido uma técnica de pessoas que têm alta inteligência emocional. Sabe aquela história de que se te pedirem para pensar em um urso branco, você automaticamente pensa num urso branco? Isso porque a nossa mente é altamente sugestionável. Mas as pessoas com mais controle sobre as suas emoções conseguem evitar isso. Ao invés de pensar no urso branco, elas se obrigam a pensar em um golfinho azul.

Percebi que meu chefe estava forçando a nossa admiração e querendo nos influenciar a uma vida de excesso. Mas eu já estava na minha trajetória FIRE e sabia que meu plano era parar de trabalhar bem antes de poder bancar um jantar com serviço de catering para os outros. Foi aí que criei o meu golfinho azul.

Na hora, eu me lembrei do começo do livro O Suficiente, do John Bogle, em que ele conta o seguinte:

Em uma festa na mansão de um bilionário em Shelter Island, Kurt Vonnegut informa a seu amigo, Joseph Heller, que o anfitrião, administrador de hedge funds, ganhou mais dinheiro em um único dia do que Heller ganhou com seu famoso romance ‘Ardil 22’ desde sua publicação. Heller responde: ‘sim, mas tenho algo que ele nunca terá… eu tenho o suficiente’.

Quanto mais meu chefe tentava me impressionar durante o jantar, mais eu pensava: “estou trabalhando para ter algo que ele nunca terá… o suficiente!”.

Sei que posso escrever tranquilamente sobre ele aqui porque ele nunca irá ler este blog. Alguns meses atrás, fomos almoçar e ele se recusou a entender minha nova vida. Para ele, não fazia sentido eu estar “desperdiçando meus anos mais produtivos”. Decidi direcionar a conversa para ele, e então ele me confessou que se sentia menosprezado pelos novos colegas de trabalho porque os outros eram mais ricos que ele. “Nesse mercado, só dão ouvidos a quem já é rico”. Eu sei, parece loucura. E é. Mas ele só confirmou o quanto meu golfinho é verdadeiro.

Desde então, sempre que vejo alguém querendo me impressionar com suas posses materiais ou com o seu dinheiro, lembro-me de que tudo aquilo é excesso. E que tenho o privilégio de ter o suficiente.

Aprendendo a ter o suficiente

Morgan Houssel, no famoso livro Psicologia Financeira disse que a melhor medida de riqueza é a distância entre o quanto você tem e o quanto gostaria de ter. Essa frase é genial. Porque sim, não existe um número X que possa te dizer “você é rico!”. Mesmo entre os bilionários, existem os que se sentem menos ricos. O número um só cabe a uma pessoa.

O mais importante é saber o quanto é rico o suficiente para você.

Às vezes, leio muitos comentários aqui no blog, de pessoas que dizem que já atingiram a independência financeira, mas que não têm coragem de largar os seus empregos. Elas se questionam se têm mesmo o suficiente. Se a regra dos 4% realmente funciona. Se o IPCA é uma boa medida de inflação.

Então elas seguem trabalhando sem perceber que isso as joga num caminho de excessos. Excesso de segurança, excesso de dinheiro e, claro, excesso de trabalho. Na busca por um patrimônio perfeito, a vida acaba prejudicada pelos excessos.

Como eu disse no início desse texto, eu percebi que tomar vinho e comer queijos franceses é uma delícia, mas repetir essa indulgência por 3 meses é um excesso que me fez muito mal.

E isso vale para uma busca desenfreada por sucesso e dinheiro. Ter dinheiro é algo maravilhoso, mas é preciso ter cuidado com os excessos. Confiar que se tem o suficiente me parece uma escolha muito mais saudável.

13 respostas

  1. Excelente texto, muito dificil encontrar esse equilibrio e principalmente o suficiente. Estou na minha jornada FIRE e ja me planejo a pedir demissao ha 3 anos, e sempre fico mudando meu numero para cima. Estou decidido que em Junho/2024, irei parar. Completo 40 anos e quero ao menos um ano de sabatico para comemorar, acredito que nao conseguirei ficar sem trabalhar por muito tempo. Essa visao do suficiente sempre muda, hoje acredito que conseguiria ter uma vinda bem boa com meus rendimentos, mas estou decidido que tendo em mente um ano sabatico, é muito mais facil de eu me desligar.

  2. Caramba Lilian, mais um texto inspirador. Li e reli várias vezes para absorver tudo. Sempre acreditei que ficar se comparando com os outros é a fórmula perfeita para a ansiedade, a sensação de “estar ficando pra trás”… e para a infelicidade. E essa reflexão me faz pensar “ficar pra trás em relação a quê exatamente?” Dinheiro? Status? Admiração das outras pessoas? A frase nevrálgica que vc falou foi “Vemos só o que está na superfície dos outros. Enquanto vivemos a nossa própria vida na mais pura profundidade” Que frase importante!! Quem não a entende está fadado a nunca sair da corrida de ratos a tempo. Ficar na corrida é a unica maneira para tentar atingir ou se manter “no nivel” dos outros, o que julgamos que será satisfatório, mas não será, pois já parte de uma visão míope da realidade. Afinal ganhar dinheiro é bom, e o numero de zeros na conta bancária nao tem limites. Como está no livro que vc citou (que eu tambem amo) “é perigoso quando o desejo de ter mais cresce numa velocidade maior que a satisfação – apesar do avanço, a sensação é de estar ficando pra trás”. E outra frase que eu gosto muito de Naval Ravikant é: “Desejo é um contrato que você faz consigo mesmo para ser infeliz até conseguir o que quer”. Portanto todo cuidado é pouco ao basear seus desejos no que vc vê a sua volta.. Abraço

  3. Que post maravilhoso, vou treinar minha mente para o “golfinho azul” achei uma ótima forma de blindagem. Mas confesso que achar esse equilíbrio é tão difícil, pois as nossas inseguranças e medos internos a todo instante fazem questão de mostrar presença, preciso muito trabalhar esse lado e achar meu equilíbrio.

  4. Obrigada por mais um post inspirador e com dicas práticas <3 Vou ficar com isso na cabeça, de treinar a mente a pensar sobre o suficiente!

  5. Mais um excelente post! Esse blog facilmente vai virar um belo livro, rs.
    Comungo da sua visão pela busca do equilíbrio, que também busco já na fase de fire.
    Lendo seu post me lembrei do ikigai e também do documentário das zonas azuis. Ter relacionamentos de qualidade, por exemplo, vale muito! Pessoas que compartilhem dos seus valores e visão de mundo.
    Também acho que o componente espiritual nessa jornada de aprendizado é essencial, cada um conforme sua inclinação e preferências, claro.
    Agradeço pelos seus relatos pessoais, que são sempre muito legais de ler.
    Abs,

  6. Olá AP30, boa tarde

    Definir e compreender ponto de equilíbrio é imprescindível para ter uma vida plena e suficiente. Em alguns momentos é bom equilibrar a esteira “hedônica” que nos cerca,

    Compartilho do seu ponto de vista e gostei da sua estória das pessoas clamarem por admiração do status de vida. Frequentemente sou tragado para discussões sobre o tipo e motorização de veículos e sempre tive dificuldades em sair dessas discussões. Vou adotar sua estratégia dos “golfinhos”. rs

    Abraços,

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