Ter um emprego vs ter um trabalho

Se você é um leitor atento do blog, já reparou que sou uma aposentada que trabalha. Eu me aposentei da vida corporativa e, depois de um ano sem fazer nada, decidi montar uma consultoria de finanças pessoais. Hoje, trabalho dois dias por semana com a consultoria e nas horas vagas, gasto bastante tempo tendo ideias e escrevendo para este blog (que apesar de não gerar renda direta, é um belo de um trabalho).

Então, seria eu uma fraude? Se eu trabalho, posso ser considerada aposentada?

Uma distinção importante

Entrei em 2024 na boa companhia do livro E se eu parasse de comprar? da Joanna Moura. A Joanna se lançou ao desafio de ficar um ano sem comprar roupas e registrou a saga no blog “Um ano sem Zara”. Eu só a conheci recentemente, e apesar de não ter sido leitora do blog, eu virei fã pelo livro. Não apenas pela história, mas pelo modo como ela escreve e coloca em palavras situações tão comuns de consumistas de carteirinhas. Eu já fui uma delas, e me identifiquei muito com as situações narradas no livro.

Numa entrevista de podcast, a Joanna falou algo que me marcou. Ela disse que não considera o consumo um vilão. Comprar coisas que tornam a nossa vida melhor e mais gratificante é uma atividade benéfica. No caso da moda, ela permite que a gente se expresse de forma criativa e exerce um impacto não negligenciável na autoestima das pessoas. Sem falar que se vestir bem já abriu portas para muita gente. O problema na visão da Joanna, não é o consumo em si, mas o excesso. O consumismo é que é o vilão.

Eu entendo a necessidade da Joanna de fazer essa distinção. Ela provavelmente está sendo criticada porque é uma ex-consumista que trabalha com moda.

É natural que as pessoas queiram colocar rótulos na gente e exigir que a gente siga um certo padrão. Se a Joanna critica o consumismo, então ela não deveria trabalhar com uma indústria que estimula tanto o consumo como a moda, certo?

Mas isso é um atalho do nosso cérebro. Esses atalhos podem até simplificar a nossa compreensão da vida, mas deixam de fora detalhes importantes e enrijecem nossa visão do mundo.

E sei que meus leitores gostam de ampliar a visão, e não as restringir. Então vamos olhar as letras miúdas da nossa relação com o trabalho.

Pesquisando no Google, encontrei uma definição interessante de trabalho e emprego:

“Um trabalho é um conjunto de atividades para, geralmente, alcançar um objetivo e pode ser remunerado ou não. Um emprego é uma atividade que se realiza com o intuito de se obter renda.”

Essa definição atingiu na mosca. Hoje eu trabalho porque sinto necessidade de atingir um objetivo: impactar positivamente a vida das pessoas.

Eu trabalho porque sinto um interesse genuíno por questões relacionadas a finanças pessoais e sinto vontade de falar sobre o assunto com outras pessoas. E sinceramente, porque minhas amigas não me aguentavam mais falando sobre dinheiro. Hoje eu cumpro minha cota semanal de conversas sobre finanças com o blog e com meus clientes da consultoria. E sou uma melhor amiga (e ouvinte) nas horas vagas.

Eu decidi pelo caminho FIRE porque eu não aguentava mais ter um emprego. Ou, como disse a definição acima, desempenhar uma atividade com o único intuito de obter renda. E era exatamente assim como eu me sentia na vida corporativa. Eu só ficava 12 horas por dia dentro de um escritório, usando roupas desconfortáveis e desempenhando atividades pouco criativas porque precisava da renda.

O trabalho não era o vilão. Era ter um emprego que me incomodava.

Primeiro, eu escolhi ter um emprego

Quando encontro pessoas que não entendem por que eu quis me aposentar aos 30 anos de idade, geralmente são pessoas que nunca tiveram um emprego, e sim pessoas que logo de início escolheram ter um trabalho na vida. Elas são raras.

Comigo não foi assim. Eu não escolhi ter um trabalho. Para mim, era importante ter um emprego e, de preferência, um emprego que pagasse bem.

Meu pai tinha uma influência muito grande nas minhas decisões. Eu disse “tinha”, no pretérito, porque depois de muito esforço de ambas as partes, hoje conseguimos reduzir sua participação nas minhas decisões. Aprendemos juntos a confiar que tudo que ele me ensinou está aqui. Mas minha vida é diferente da dele, meus planos também, então a melhor pessoa para tomar as decisões sobre a minha vida hoje em dia sou eu mesma.

Mas aos 18 anos de idade, a minha vida era decidida 100% em conjunto com ele. E escolhemos juntos que a faculdade de economia me daria um excelente emprego. Por excelente emprego, leia-se, uma atividade que pagasse bem. E acertamos. Fui muito bem remunerada durante a minha vida corporativa.

O curioso dessa história toda é que ela é fruto de um círculo familiar confuso em relação à distinção de emprego e trabalho.

Meu avô, pai do meu pai, foi um empregado a vida toda. E meu pai sempre se frustrou com isso. Ele só trabalhou para os outros, recebeu uma renda razoável e se aposentou. Mas ele era extremamente inteligente. Para vocês terem uma ideia, ele lia o dicionário nas horas vagas.

Meu pai acreditava que meu avô poderia ter ido mais longe se tivesse arriscado mais. E foi assim que meu pai decidiu abandonar a faculdade e empreender. Entre erros e acertos, meu pai teve uma vida muito gratificante no trabalho. Ele trabalha até hoje e é do tipo que não vai se aposentar, nunca. Tirar férias é sinônimo de tortura para ele e ele considera que viagem é um “fetiche moderno”, o que sempre garante boas risadas nos encontros familiares.

E aí vem a parte um tanto quanto peculiar dessa história. Ele não me motivou a seguir a sua trajetória. O caminho de um empreendedor é árduo o suficiente para que ele não desejasse o mesmo para mim. O que ele desejou para mim é que eu estudasse (e muito) e fosse ser empregada de alguém, com um belo salário garantido no fim do mês e férias remuneradas.

Quando decidi me aposentar dessa vida, foi um choque para ele. Mas o que atenuou esse choque foi ele perceber que eu não queria parar de trabalhar. Eu só não queria mais ter um emprego.

A vantagem é que agora eu posso empreender sem me preocupar se vou ter dinheiro para pagar as contas no final do mês. Meu custo de vida está garantido pela renda dos meus investimentos. O que eu ganho com o meu trabalho na consultoria é extra, o que me ajuda a ter mais paz de espírito na vida FIRE.

Depois, eu aprendi a ter um trabalho

Até que atingi o FIRE, passei um ano viajando e o que eu considerava improvável aconteceu: eu senti falta de uma atividade produtiva.

Passar os dias fazendo atividade física, cozinhando minha própria comida e estudando as coisas que me interessavam era ótimo. Mas sentia falta de contribuir socialmente. Sentia falta de desafios intelectuais. Sentia falta da alegria de desempenhar um bom trabalho e ser recompensada por isso.

Foi assim que decidi ter o blog e começar meu trabalho como consultora de finanças pessoais. Desde então, sou uma aposentada de emprego, mas que trabalha.

O mais curioso é perceber que isso é algo comum entre os FIREs com quem fiz amizade. A Yuka do Viver sem Pressa já falou sobre isso no blog dela. Quando atingiu a meta FIRE, passou a ver o emprego dela com outros olhos. E hoje trabalha com foco nos aspectos positivos da sua atividade. A Carol do Jornada FIRE também tem uma história parecida com a minha: aposentada jovem e consultora de finanças.

Talvez esse seja o grande presente da vida FIRE. Você não precisa mais de um emprego para pagar suas contas. Você é livre para fazer o que quiser. E isso inclui escolher trabalhar se isso for gratificante para você.

Minha resposta para a pergunta inicial do post é: não sou uma fraude!

Eu sou uma aposentada que trabalha. Mas estou longe de ter um emprego.

21 respostas

  1. Excelente ponto de vista, aposentada aos trinta.

    Gosto muito de conhecer as histórias FIRE das pessoas, é muito inspirador.

    Esse sentimento de poder escolher não ter mais um emprego e ficar tranquilo para trabalhar com o que quiser é o que mais me motiva para chegar lá.

    Grande abraço.

  2. Olá Lilian, boa tarde

    A distinção entre emprego e trabalho apresentada no texto é excelente. Conheço algumas pessoas mais próximas que amam o trabalho e dessa forma não consideram um fardo, tenho até conhecidos que se aposentaram e ainda trabalham até mais animados e dispostos.

    Pretendo também continuar a trabalhar, mas de uma forma mais frexível e além de tudo prazerosa.

    Abraços,

  3. Existem os afortunados que conseguiram conciliar os dois – trabalho e emprego, ocupaçao e remuneraçao ao mesmo tempo. Isso é coisa pra poucos, ao contrário do que a literatura tenta te empurrar. O mais razoável a meu ver nao é fazer o que vc gosta, e sim fazer o que vc tem mais facilidade. Depois que acumular uma grana aí sim vc vai fazer o que gosta. Sempre pensei em ser consultor financeiro. Precisa alguma certificaçao ? Abs e sucesso sempre !

  4. Eu gostei muito dessa diferenciação entre trabalho e emprego, nunca tinha pensado nisso!
    A grande maioria enxerga o emprego como um fardo, o único meio de conseguir um pouco de dinheiro e subsistir. Além do horário efetivamente gasto no expediente, um emprego muitas vezes tem demandas ocultas como o tempo gasto indo e voltando do local de trabalho. As vezes o gasto de energia/ estresse é tão grande que a pessoa não tem mais disposição para ter hobbies e outras atividades, e entra num ciclo de dormir, ir ao emprego, voltar cansado, dormir.
    Outro dia estava conversando com amigas da academia, e a gente ficou pensando em como existem empregos ruins! que demandam esforço físico ou tem algum grau de insalubridade, ruídos, exposição a sol, exposição a radiação e produtos químicos. Tem coisa pior que limpar vidraça de prédios de 25 andares? E trabalhar em matadouros de animais? E tanatopraxia (cuidar da aparância dos mortos para o enterro) ou limpar banheiros químicos então? Se alguém acha o próprio emprego maçante ou ruim, sempre vai ter algum pior!

  5. Muito bom! Vira e mexe vemos umas pessoas criticando o objetivo FIRE mas pelos argumentos da pessoa vc vê que claramente não entendeu essa questão trabalho x emprego. Eu até pretendo depois que me declarar FIREe continuar trabalhando no que faço atualmente, mas com uma grande diferença: sem relógio-ponto, sem cobrança, nos meus termos, podendo me ausentar para viagem quando quiser, e com um horário(bem) reduzido, tipo uma tarde na semana.. Se a minha ideia der certo, vai ser pouco mas já o suficiente para talvez reduzir minha TRS para uns 3.5% a 3.7%, o que já ajudará tb.

  6. Elzinha que post incrível. Obrigada. Comigo aconteceu o mesmo. Chegou uma hora que cansei de sentar no sofá e passar a tarde lendo, não aguentava mais cozinhar minha própria comida e nem podia sair viajando por aí porque tenho um filho que vai a escola. Entendi que tinha “feito nada” até que cansar de “fazer nada” e meu deu vontade de trabalhar. Então empreender com algo divertido e com pessoas que eu gostava de conviver me gerou uma felicidade imensa. Estou adorando ver meus projetos crescerem e se eles derem $ um dia, ótimo, mas poder trabalhar com a leveza de não depender do $ eh muito bom. Não acho que somos uma fraude. O Tim Ferris tem um conceito de que devemos intercalar intervalos produtivos com intervalos ociosos na vida e concordo 100%. Bjs

  7. Como me tornar um bom consultor financeiro? Sou autodidata em investimentos e financas. Que cursos poderia agregar valor neste sentido?

  8. Assim como a roupa pode ser uma forma de autoexpressão, enxergo (atualmente) o trabalho da mesma maneira. Mas quem é livre pra se expressar através do trabalho de fato, dado que vivemos numa sociedade capitalista (e isso não é uma crítica)? O problema existe justamente nessa distinção entre emprego e trabalho que vc tão bem pontuou. A Independência Financeira traz superpoderes. E nem precisar atingir o “fire completo” pra isso. Qualquer degrau de evolução na saúde financeira trará mais poder de escolha. O conceito de Coast Fire que tem sido cada mais falado é uma das alternativas pra perseguir a IF, mas sem esperar até o final pra usufruir do que ela pode proporcionar (liberdade com o trabalho). Obrigada pela citação, Lilian! Mais um excelente texto!! :)

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