Caros leitores, comecei a desenvolver este texto e ele acabou ficando longo demais. Interessante como esse espaço tem despertado em mim a necessidade de escrever textos cada vez mais extensos e profundos. Por isso, decidi dividi-lo em três partes: a primeira será publicada hoje, a segunda daqui a 15 dias, e a terceira dentro de quatro semanas.
Minha jornada em direção à independência financeira começou com uma constatação angustiante: o caminho “normal” que a sociedade me apresentava era trabalhar por mais de 40 anos até, finalmente, alcançar a aposentadoria.
Essa ideia começou a me parecer sufocante, principalmente porque vivemos em uma era em que constantemente nos deparamos com mensagens inspiradoras, como “viva uma vida que faça sentido para você”.
Mas como fazer sentido de uma vida em que o tempo, o recurso mais precioso que temos, é predominantemente consumido por uma jornada de trabalho de no mínimo 40h por semana?
Quando eu refletia sobre o que realmente importava para mim, eu concluía que era ter tempo para cozinhar, exercitar-me e manter os laços afetivos e minha curiosidade vivos. Mas para tudo isso, eu precisava de tempo — tempo que, até então, era devorado pelo trabalho.
Eu vivia em uma sociedade que pregava a liberdade, mas não ensinava como conquistar o tempo necessário para usufruí-la.
Isso me pareceu paradoxal. Eu lia livros, assistia a séries e filmes, e ouvia podcasts que me incentivavam a encontrar sentido e propósito na minha vida, mas ao mesmo tempo, estava presa em uma estrutura de sociedade que me empurrava para um ciclo interminável de trabalho e consumo. Na prática, parecia que o verdadeiro propósito era sacrificado apenas para garantir o pagamento das contas no final do mês.
Foi aí que eu descobri o movimento FIRE (Financial Independence, Retire Early) e encontrei a peça que faltava nesse quebra cabeça paradoxal. A ideia era trabalhar e sacrificar meu tempo por um período limitado, até acumular dinheiro suficiente para não precisar mais me dedicar exclusivamente ao pagamento das contas. E então, eu poderia finalmente direcionar minha vida para a busca de um propósito maior.
Você pode estar se perguntando: ‘Lilian, depois de mais de dois anos escrevendo aqui, por que você resolveu voltar a tratar de questões tão básicas agora?‘
Bom, o principal motivo é que muita gente nova chegou ao blog nas últimas semanas. Isso aconteceu graças a dois eventos em que participei recentemente. Um foi a minha entrevista no podcast ‘Talvez você deva falar sobre dinheiro‘ e o outro foi uma live com o Rodrigo Medeiros. Se você tiver paciência para me ouvir por mais de 3 horas, recomendo fortemente que escute os dois! No primeiro, falo bastante sobre como consegui aumentar minha taxa de poupança e me aposentar mais cedo. Já no segundo, aprofundo minha estratégia de investimentos, que me permite viver de renda de forma sustentável pelo resto da vida.
O segundo motivo é que essa exposição também me deixou mais aberta a críticas, principalmente de pessoas que ainda não compreendem totalmente o movimento FIRE. E sim, à primeira vista, o movimento pode parecer um pouco paradoxal. Mas, ao invés de responder diretamente a cada crítica que recebi dos ouvintes desses dois eventos, decidi abordar o tema de uma forma diferente, que vai ficar clara nos próximos parágrafos.
É claro que não recebi apenas críticas. A grande maioria das pessoas achou minha história inspiradora, o que resultou nessa enxurrada de novos leitores aqui no blog. Fico emocionada e profundamente grata por todo esse carinho. Isso só me dá mais gás para continuar escrevendo sobre essa forma alternativa de viver — uma vida em que se gasta menos e se vive mais.
Como vocês sabem, boa parte do meu tempo livre na aposentadoria tem sido dedicada aos prazeres da filosofia. Se eu computasse, provavelmente chegaria a um número assustador de horas de vídeos assistidas de programas com filósofos no YouTube. O preferido da vez tem sido o canal do Café Filosófico.
E qual não foi a minha surpresa quando ouvindo o programa com o filósofo Renato Janine Ribeiro, eu me deparei com um movimento antecessor ao movimento FIRE e muito parecido?
Os Garotos de Seattle
Na palestra sobre “Simplificar a Vida”, o filósofo apresentou um experimento vivido pelos “Garotos de Seattle”. O programa, gravado em 2005, explorou um movimento que surgiu alguns anos antes, cujos detalhes eu não consegui encontrar em fontes como Google e ChatGPT. Se alguém tiver mais informações sobre esse movimento e puder indicar o caminho, ficarei muito grata.
As semelhanças entre esses jovens e o movimento FIRE são notáveis. Ambos compartilham uma abordagem crítica em relação aos custos reais das escolhas de vida e buscam formas de otimizar a vida para alcançar um equilíbrio mais satisfatório entre trabalho e realização pessoal.
Segundo o filosofo, esses jovens de Seattle eram em sua maioria economistas e profissionais urbanos (assim como eu), que começaram a refletir sobre o verdadeiro custo de seus ganhos e luxos (assim como eu também).
E então, em vez de simplesmente adquirir os produtos mais caros e desejados, eles começaram a se perguntar: “Quanto realmente custa cada ganho que eu tenho?”
Por exemplo, ao considerar a compra de um carro mais sofisticado, eles passaram a questionar quantas semanas adicionais de trabalho seriam necessárias para financiar esse bem. Ou seja, eles buscaram entender o valor desses benefícios, através de um custo real e quantificável.
Esse grupo começou a questionar o frenesi de uma vida que raramente permite espaço para reflexão e autocrítica. Aos poucos, perceberam que muitos dos ganhos que acumulamos ao longo da vida, na verdade, não são tão significativos quanto parecem. São apenas objetos a mais que adquirimos, enquanto, em troca, perdemos horas valiosas de nossas vidas. Esse ciclo de consumo desenfreado acaba nos custando muito mais do que imaginamos em forma de tempo, que no final das contas, é a nossa moeda mais preciosa.
Então, eles se questionaram sobre a quantidade de trabalho necessária para sustentar um estilo de vida que, em última análise, os afastava de seus verdadeiros valores. Em um mundo que oferece oportunidades e bens em excesso, esses jovens decidiram simplificar suas vidas, cortando gastos desnecessários e redefinindo o conceito de “vida confortável”.
A vida confortável passou a ter novas nuances: viver fora da cidade, optar por transporte público ou outras escolhas que reduziam o custo de vida e encurtavam o tempo de trabalho.
E então, eles passaram a vislumbrar a possibilidade de parar de trabalhar aos 30 anos, acumulando um montante suficiente para viver da renda gerada por seus investimentos.
Chocante, não é? Eu sempre imaginei que o movimento FIRE tivesse surgido nos anos 2010, mas agora suspeito que, mesmo antes dos jovens de Seattle, outras pessoas já estavam fazendo reflexões e chegando a conclusões semelhantes.
Mas o mais curioso sobre a palestra é que o filósofo decidiu destacar que essa forma de vida simples não é isenta de paradoxos. Para mim, que via o movimento como uma solução para paradoxos da vida moderna – como o dilema entre propósito e as 40 horas semanais de trabalho – foi surpreendente ver um filósofo abordando os paradoxos da resposta para o meu paradoxo.
Então decidi explorar esses paradoxos mais a fundo neste texto. Muitos deles surgem como críticas ao movimento FIRE, que têm me acompanhado desde que comecei a discutir mais abertamente sobre o tema, tanto aqui quanto no Instagram.
O Paradoxo da Quantificação: Racionalizando os Desejos
O primeiro grande paradoxo da vida FIRE é justamente a tentativa de quantificar algo que, por sua natureza, é intangível: os nossos desejos.
Quando colocamos em números o custo de nossas vontades — como ter um carro novo a cada ano — conseguimos perceber o peso dessas escolhas em termos de tempo de trabalho. Só que fazendo isso, também corremos o risco de transformar em meros cálculos aquilo que deveria ser uma decisão emocional.
Como seres humanos, somos movidos tanto pela lógica quanto pelos sentimentos. No entanto, quando começamos a quantificar cada aspecto de nossa vida, reduzindo nossas decisões a uma simples análise de custo-benefício, corremos o risco de desumanizar nossas escolhas.
É aí que o movimento FIRE enfrenta seu primeiro dilema: quando a vida se torna uma equação, onde cada decisão deve se encaixar no plano maior de alcançar a liberdade financeira, poderíamos estar nos distanciando das experiências que realmente nos fazem sentir vivos?
Talvez seja audacioso da minha parte querer dar uma resposta definitiva para esse paradoxo. Mas vou tentar. Afinal, enquanto os filósofos são mestres em levantar questões, eu vivo o movimento FIRE na pele há alguns anos.
Uma das consequências desse aparente paradoxo é cair na clássica conclusão de que “dinheiro não é tudo”. E essa análise, em especial, pode ser perigosa para as mulheres. Não são poucas as amigas que conheço que delegam suas questões financeiras para pais ou maridos, acreditando que o dinheiro é algo muito pragmático e, por isso, preferem se concentrar em aspectos mais sensíveis (e femininos) da vida.
Mas onde nos leva esse discurso tão comum de que “dinheiro não é tudo”? Ironicamente, a uma sociedade onde o dinheiro é a principal preocupação. Apenas 6% dos brasileiros se sentem financeiramente confortáveis, enquanto mais da metade enfrenta altos níveis de estresse relacionado às finanças. E, como mostram os estudos, questões financeiras estão entre os principais fatores que levam ao divórcio. Isso revela que, não podemos minimizar a importância do dinheiro, ele está no centro das nossas maiores ansiedades e dilemas cotidianos.
Eu concordo que somos humanos. Não somos nem puramente instintivos como os animais, nem máquinas programadas como robôs. Nosso córtex pré-frontal nos permite tomar decisões racionais, mas, ao observar as estatísticas mencionadas, chuto que a maioria das pessoas vive mais à mercê de seus instintos quando se trata de dinheiro.
E, claro, não somos os únicos responsáveis por esse comportamento. A publicidade explora habilmente nossos medos e inseguranças. O medo de parecer feio nos leva a comprar cosméticos; o medo de fracassar nos incentiva a adquirir carros caros que são típicos símbolos de status; o medo de desperdiçar a vida nos faz buscar férias luxuosas, muitas vezes apenas para exibi-las nas redes sociais. Esses impulsos, moldados pela pressão social e pelas mensagens publicitárias, alimentam um ciclo de consumo que nos afasta de decisões mais conscientes e equilibradas.
Aí eu te pergunto: são esses desejos que nos fazem mais humanos, ou apenas perpetuam um ciclo de consumo irracional?
O que aprendi com o movimento FIRE e a filosofia da frugalidade é que uma vida verdadeiramente satisfatória custa muito menos do que os publicitários nos fazem acreditar. E, como ela custa pouco, fica mais fácil planejar estrategicamente nossas finanças, sem sacrificar uma vida significativa no presente.
Curiosamente, eu ouvia a esse episódio enquanto caminhava de volta de um almoço com amigas em plena quarta-feira. O almoço foi a 5km de distância da minha casa, e, em outra época, se eu ainda estivesse presa a um escritório, essa distância seria um impeditivo. Provavelmente, eu teria de recusar o convite simplesmente porque não teria tempo de ir e voltar durante o horário de trabalho. Além disso, decidi voltar caminhando — uma caminhada de 1h30 que me permitiu ouvir todo o debate. Isso, para mim, é uma vida muito mais próxima do ideal de humano, e bem pouco robótica.
Essa discussão toda me lembrou da famosa fábula da cigarra e da formiga. A formiga, incansavelmente, trabalha durante todo o verão para garantir sua sobrevivência no inverno, enquanto a cigarra aproveita o presente sem se preocupar com o futuro. Quando o inverno chega, a cigarra sofre as consequências de sua despreocupação, enquanto a formiga colhe os frutos de seu esforço.
Para mim, o movimento FIRE nos aproxima mais das formigas (mesmo que a comparação não pareça tão atraente, rs). Não se trata de nos transformar em robôs que ignoram nossos desejos e instintos, mas de encontrar um equilíbrio saudável entre planejamento e prazer. A ideia é cultivar a disciplina necessária para garantir um futuro tranquilo, sem abrir mão de viver o presente de forma significativa e consciente.
Entre robôs calculistas e primatas impulsivos, o verdadeiro caminho é sermos humanos. Usamos tanto o córtex pré-frontal quanto o sistema límbico, equilibrando o racional com o emocional.
Quem não entende esse equilíbrio, ou julga o movimento FIRE de maneira superficial, acaba preso em um de seus extremos. De um lado, está o “robô”, que acredita que segurança só vem de trabalhar para sempre. Do outro, está o “primata”, que vive sem planejamento, achando que o futuro pertence ao acaso.
Eu entendo essa confusão, especialmente na sociedade imediatista em que vivemos. Mas, se eu pudesse debater com o filósofo, eu diria que o movimento FIRE (e os jovens de Seattle) é uma das poucas alternativas para sermos humanos por completo — equilibrando razão e emoção para vivermos de forma mais plena.
Daqui 15 dias eu volto com a continuação desse texto. Espero que gostem!
7 respostas
O movimento FIRE é bem mais antigo que 2010, Lilian. Nos EUA a terminologia começou a aparecer com mais frequência nos anos 90, tendo início bem no comecinho da década mesmo.
Se observar qualquer grupo humano, seja em manobras militares, seja um navio pirata, temos uma ordem e comandantes e comandados cumprindo diversas tarefas de forma que a tropa não fique ociosa (ordem).
Adotar o FIRE é mais do que apenas acumular uma quantia de dinheiro e se declarar fire.
É mudar de uma vida regida pelo dinheiro (busca pelo dinheiro) para uma vida regida pelo tempo (busca em significar o tempo).
É sair do senhor dinheiro para o senhor tempo.
Na vida em busca do dinheiro nos temos um roteiro a seguir e uma quantificação (ordem).
Na vida em busca de significar o tempo qual é o roteiro?
Que lindo seu comentário Sousa!
Obrigada ;)
Apesar de ainda não ser aposentada, me dei um tempo e há cerca de 2 anos eu também tenho dedicado um tempo ao estudo da filosofia, vc conhece a Nova Acrópole? Eles tem cursos presenciais bem interessantes.
Sou mais velha que você, e esse paradoxo entre cálculos (exatos) e o acaso assombra minhas reflexões.
Parabéns pela sua escrita sincera e visceral
E seguimos empilhando conhecimento e dinheiro mas será que encontraremos a verdadeira Sabedoria ?
Difícil quantificar o suficiente
Olá Ana! Obrigada pela indicação da Nova Acrópole!
Muito legal sua analogia com conhecimento. Empilhar dinheiro por si só é sinal de riqueza tb?
Excelente texto Lilian! Para mim, esse equilíbrio saudável entre planejamento e prazer é atualmente o que mais me faz pensar e as vezes me incomoda. Eu e minha esposa economizamos 50% do nosso salário líquido, para isto, temos que fazer algumas abdicações, e tudo bem, sei que estamos no caminho certo, mas a sensação de não estar aproveitando a vida e de estar deixando de ter experiências me incomoda. Mas quando paro para pensar a fundo, nós temos aproveitado sim, temos muito tempo de qualidade com a nossa filha, sempre fazemos passeios, sempre viajamos nas férias, a dificuldade está em tirar essa sensação dos meus pensamentos.
Muito bom!
A gente confunde aproveitar a vida com consumismo.
E é uma confusão mesmo porque não é a resposta para uma vida boa!
Que bom que estão poupando 50% da renda, uau, isso vai fazer a IF chegar logo mais!