A sociedade do cansaço

Acontece algo curioso comigo hoje em dia. Durante a semana, eu fico imersa no meu novo estilo de vida. Eu tenho tempo para ir à academia, cozinhar minha própria refeição e estudar coisas novas, como filosofia e estratégias de opções para tentar aumentar a rentabilidade da minha carteira (ainda não sei ao certo se é algo possível!). Também tenho tempo para me dedicar a novos hobbies, como cantar, tocar violão e fazer crochê.

Mas aí chega o final de semana e eu tenho diversos eventos sociais para participar. Eventos com amigos e familiares que estão vivendo a vida que eu tinha. Muito trabalho, muito consumo, muita ostentação. E muita comodidade. É impressionante como as pessoas ainda dependem de carro para tudo, mesmo numa cidade com um transporte público eficiente e recheada de ciclofaixas como São Paulo.

E aos finais de semana, eu sinto uma espécie de descolamento da minha realidade. Não são raras as vezes que eu falo para o meu marido: “será que a gente é muito louco?”. Porque é claro que ir andando a um evento que está a 3km de distância de nós não é o normal. E é muito menos normal usar roupas compradas em brechó com um casaco de crochê feito por mim.

Recentemente, numa conversa com uma amiga que ainda está presa no ciclo trabalho-consumo, eu perguntei o que ela iria fazer no final de semana e ela disse: “eu vou descansar, não quero fazer nada, só ver Netflix”.

E foi então que eu tive um clique. As pessoas ao meu redor estão cansadas, e é por isso que elas precisam de tanto comodismo. E eu também já me senti assim.

Quando eu trabalhava, eu era acordada por um despertador todo dia. Eu não podia me dar ao luxo de acordar quando meu corpo desejasse. Eu sofria a pressão de entregar trabalhos inúteis num período curto. Eu tinha uma rotina exaustiva em que até ficava feliz quando estava gripada porque aí eu tinha uma boa desculpa para não ir malhar.

Mas eu tive que quebrar um ciclo. Eu tive que repensar minha relação com o consumo. Eu tive que entender que o que eu tinha de dinheiro era suficiente. Que uma casa maior, que férias mais luxuosas, que comer em restaurantes caros só ia me deixar presa no cansaço da rotina. E não necessariamente me fazer mais feliz.

Já viram essa animação? Ela é didática. A nossa sociedade atual vive numa busca por felicidade que passa por uma rotina infeliz. É um ciclo vicioso, e não virtuoso como os marketeiros querem que a gente acredite.

A Sociedade do Cansaço e o Livro Inspirador

No meio dos meus estudos de filosofia, decidi ler o livro A sociedade do cansaço de Byung-Chul Han.

Não é um livro fácil de ler, mas vou tentar traduzir os conceitos dele para a minha forma de enxergar a vida.

A ideia central do livro é que mudamos de uma sociedade de disciplina para uma sociedade de desempenho.

Antes, na sociedade da disciplina, a lógica era a obediência. Obedecíamos à igreja, aos nossos chefes, a definições claras de família, de sexualidade. A ideia era “aguente firme, que logo mais você será recompensado na aposentadoria”.

Vale dizer que, embora ele passe boa parte do livro levantando críticas à sociedade atual, ele não chega a defender que retornemos para essa sociedade de obediência (ainda bem).

A sociedade atual, baseada na lógica do desempenho, está muito bem representada por slogans famosos como “Yes, we can”, “Just do it” e a versão brasileira do “Vem ser feliz”.

A ideia por trás disso tudo é: você deve ser ambicioso com a vida. Deve querer mais.

O problema é que isso nunca te satisfaz. Faz parte dela que você queira SEMPRE mais.

Você nunca se contenta com o que já conquistou, você foca naquilo que ainda não tem. É o caminho à sua frente que rege suas ações, e não o caminho já trilhado até então.

Fomos do excesso de negatividade, para o excesso de positividade.

Enquanto a sociedade da disciplina tinha como base o “não”, a sociedade atual tem como base o “sim”.

E esse excesso de positividade, que pode parecer algo muito bom, na verdade nos prende numa lógica perversa.

Se você pode tudo, se você tem que querer tudo, se você tem que ser mais, então você nunca pode se acomodar. Você nunca pode descansar.

Nessa busca incessante pelo sucesso, estamos nos tornando uma sociedade muito bem-sucedida, mas extremamente exausta. É a sociedade do cansaço.

Excesso de Consumo = Cansaço.

Esse cansaço está diretamente ligado ao excesso de consumismo.

Sua próxima casa tem que ser maior, por quê? Por que todos os seus amigos estão dando um upgrade no apartamento deles?

Seu próximo carro tem que ser importado, por quê? Por que isso é um sinal de que você está progredindo na vida?

As coisas mais básicas da vida, como se alimentar, ter um abrigo e poder se deslocar do lugar A ao lugar B, viraram uma grande esfera da ostentação. Não à toa, é onde as pessoas mais gastam dinheiro hoje em dia: com moradia, alimentação e transporte.

E eu entendo que a lógica por trás da ostentação é que a gente precisa se vender. Na sociedade do desempenho, a gente deixou de ter um chefe claro (Deus, um único chefe a vida toda, os pais) e passamos a ser chefes de nós mesmos (“Yes, we can!”).

Pensa bem, enquanto a religião propunha uma série de regras claras que precisavam ser seguidas, como “só fazer sexo depois de casado”, quem hoje está ditando as regras de que temos que ter um carro bacana? Nós mesmos.

Somos nós mesmos que nos impomos uma rotina exaustiva. “Trabalhe enquanto eles dormem, estude enquanto eles se divertem.” E nem a diversão mais pode ser simples. Work hard, play hard.

Quantas pessoas não saem de férias com uma planilha esquematizada sobre o que fazer em cada dia? Com restaurantes já reservados? A gente não se permite nem ao menos comer na hora que tem fome nas férias porque senão a gente perde a reserva do restaurante que a gente TEM que ir. Quem está nos obrigando a tudo isso?

Onde está escrito que se você ganha bem, então você deve gastar bem?

Por que não funcionamos numa lógica de que quem ganha bem pode se dar ao luxo de se aposentar cedo? Já escrevi aqui que o economista John Maynard Keynes esperava que em 2030, a humanidade precisaria trabalhar apenas 15h por semana (3h por dia) para suprir suas necessidades de consumo e dedicar o restante do tempo para o lazer. Isso porque o avanço tecnológico fazia com que a produção de bens crescesse de forma exponencial.

Onde foi que Keynes errou? Ele não superestimou a produção de bens. Isso realmente cresceu de forma exponencial. O erro de Keynes foi subestimar o tamanho do desejo humano por bens materiais.

O fim da contemplação

O livro conclui que a maior perda dessa sociedade é a nossa capacidade de contemplação. A gente não se permite mais fazer nada.

Mesmo quando minha amiga diz que vai descansar no final de semana, eu sei que ela vai se impor uma rotina de maratona de séries que está todo mundo comentando. Ou ler um livro que tem a chave do sucesso para a maternidade. Ou passar horas nas redes sociais absorvendo o máximo de informação possível para não ficar de fora do que está rolando no mundo.

Eu já escrevi aqui sobre a nossa dificuldade de se entregar ao tédio. E sim, tem muita gente que critica se aposentar cedo porque “como você vai sair do trabalho aos 30 anos de idade, quando você está no auge da sua vida produtiva?”.

O problema é que ter um emprego que paga as suas contas normalmente é diferente de trabalhar com algo que te dá prazer. E ser produtivo não implica em trabalhar 8h, todos os dias. Você estando bem ou não para isso. Você querendo ou não.

Terminei de ler o livro com a sensação de que essa busca incessante de preencher a vida é o que nos torna cansados.

Antes a gente aceitava que a vida era isso e a religião nos concedia um objetivo claro: aguente firme porque o paraíso mesmo é só depois que morre.

Hoje já entendemos que é essa vida aqui mesmo que temos. E que ela será longa. Então faça bom proveito dela.

Isso nos coloca numa busca desenfreada de fazer sempre o melhor. E a gente acaba perdendo o melhor.

Estamos todos cansados?

Sim, mas os FIREs estão menos cansados.

Viver uma vida frugal é uma boa saída para o cansaço. Primeiro porque isso permite que a gente se aposente cedo. E se não temos obrigações de trabalhar 40h por semana, isso nos leva a ter mais tempo para descansar fisicamente.

E segundo porque a sabedoria frugal já implica em querer menos. Como disse o Aposente Cedo, “com a grana que a gente se propõe a viver, não dá para gastar R$40 mil numa viagem para as Maldivas”. E tudo bem. A gente já entendeu que não é isso que dá um valor objetivo à vida.

Quando a gente já sabe que não destinaremos nosso dinheiro para seguir certas modas de consumo, a gente se sente menos cansado. Eu já desisti de fazer unha toda semana no salão, então já sei que estarei por baixo no quesito estética impecável. Isso faz com que eu nem sinta a necessidade de tentar uma harmonização facial. E menos coisa para fazer significa menos cansaço.

Eu confesso que ler esse livro me deixou muito mais grata pela minha vida FIRE. Eu tenho aceitado melhor o fato de que não estou construindo a próxima Amazon (não que isso fosse a minha ambição, mas às vezes bate um desespero de improdutividade, confesso).

Inclusive porque o livro me fez pensar no caminho que eu já trilhei. Foi muito difícil chegar até aqui. E atingir a independência financeira com 30 anos de idade foi um feito e tanto. Já está de bom tamanho.

Essa semana eu me obriguei a cumprir apenas uma tarefa da minha TO-DO LIST: resolver o problema de infiltração no apartamento que alugo. Tudo o resto deixei para depois. Tudo o resto eram coisas que eu achava que poderiam melhorar a minha vida. Mas decidi não ter pressa.

Também decidi fazer minhas caminhadas sem ouvir podcast. Ir à academia sem ouvir música. Reduzir o nível de distrações.

Continuei com a minha rotina de acordar sem despertador, deixar que meu corpo desperte quando ele se sentir descansado.

Esses são meus luxos no momento, coisas que eu não consigo abrir mão. Eu ainda vivo inserida na sociedade do cansaço. Mas acho que talvez, eu esteja no quartil das pessoas menos cansadas na atualidade.

É esse desempenho que vou comemorar por enquanto.

26 respostas

  1. Excelente texto, Lilian! Esse livro meu pegou DEMAIS… joguei o jogo pra poder descansar, mas ainda me sinto vítima do “we can do it” sem fim. Trabalhando nessa desconstrução ainda… A parte boa é que ter alcançado a IF dá um conforto e tanto nesse processo e conforme a gente vai degustando a beleza do desacelerar, percebe que esse é o caminho mesmo. Me deu vontade de ler o livro novamente! Obrigada!!

  2. Curto demais as perspectivas e pensamentos que divide conosco.

    Eu entendo e concordo com basicamente tudo que escreveu, mas penso também que, infelizmente, é a existência e manutenção disso na sociedade que abre espaço para que poucos, como nós, aprendam a dobrar as regras e possam “vencer o sistema”. A própria noção de FIRE necessita de uma sociedade consumindo pra fazer a economia girar e crescer.

    1. Você tem um ótimo ponto!
      É esse cansaço que mantém a roda do capitalismo gerando, e permite que a gente possa viver de renda. Mas ainda acho difícil que todo mundo vire FIRE e essa roda acabe. Sorte de quem consegue pensar fora dessa caixa do desemepnho!

  3. É um círculo vicioso, onde vc dificilmente percebe que está preso. Vc começa a trabalhar, ganha uma miséria, nao tem grana pra nada entao se esforça até que começa a ganhar melhor. A essa altura vc já está de saco cheio de enfrentar 2 horas de busao e metro lotado todo dia e vai morar perto do trabalho pagando um aluguel caro ou compra um carro. Mais esforço e dedicacao, vc passa a ganhar mais e pra compensar todo o stress pra ter chegado lá vc quer férias em resort, carro e casa confortaveis. A essa altura o cara já está num cargo com um monte de responsabilidades e nao tem espaço mental pra mais nada, ele quer tudo o que for mais conveniente, nao importa o preço desde que ele nao precise se esforçar porque já está cansado da loucura do dia a dia. Até perceber que está se matando pra manter esse estilo de vida, pode demorar… A sociedade do sim nao é sustentável, é uma praga.

      1. Nao necessariamente uma busca insaciavel. Chega um ponto que a pessoa está se matando só pra manter o que tem. O primeiro passo na carreira foi legitimo pois foi uma tentativa de melhorar sua qualidade de vida, mas em algum momento essa busca por melhoria sai fora de controle. Em vez de vc controlar o trabalho, ele te controla. É a socidade do cansaço.

  4. Q achado fantástico esse blog! Sou recem chegado nele e este foi o primeiro texto que li. Estou impressionado como o texto e opinioes dialogam diretamento com minhas convicções de vida. Nunca encontrei a felicidade nas compras materiais ou nas viagens internacionais (programadas no excel kkk). Recebi a alcunha de “mao de vaca” e aceitei q devia ser essa a explicação, até descobrir o movimento FIRE. Se existe um objetivo que vale a pena ser buscado na vida, para mim, é o FIRE.

    1. Bem vindo ao blog Lucas! Tb acho que o FIRE é um ótimo objetivo. E que bom que descobriu o movimento, assim vc troca o apelido de mao de vaca, por aposentado. Meus amigos respeitam mais a minha frugalidade depois que me declarei aposentada rs.

  5. Assim como um viciado tem medo de perder sua droga, tb temos medo de ficar sem fazer nada, nesse caso a nossa droga é estar fazendo alguma coisa, estamos totalmente condicionados a isso. Para entrar na vida FIRE será preciso criar um processo. Ir aos poucos. Caso contrario teremos uma crise de abstinência.

    1. Tá aí um medo que eu não tenho rs… tenho muitos hobbies e distrações pra ocupar todo meu tempo.. Se tivesse condições me declararia FIRE hoje mesmo..

  6. Que post! Muito bom para essa época do ano, no qual o consumismo deixa as pessoas muito mais suscetíveis à ele.

    A sociedade do desempenho nos suga a cada dia através das tarefas e metas que precisamos cumprir e nos distancia cada vez mais da contemplação, da simplicidade e do que realmente vale a pena.

    O ócio se tornou quase uma aberração, o sono se tornou perda de tempo. Mas não somos máquinas!

    Em que esse excesso de produtividade imposta ou sutilmente alocada como normalidade em nossas cabeças está resultando?

    Em pessoas mais felizes ou mais ansiosas ou estressadas?

    Repare no olhar das pessoas. Podem estar com o celular ou o carro mais atual, cheio de acessórios ou aplicativos que nunca serão usados. Na hora da compra é aquela euforia. Mas e depois de 6 meses?

    A busca por mais, por novidades sempre continuará existindo em uma sociedade que não quer que as pessoas estejam satisfeitas com uma vida simples, mas sim, com uma vida que proporciona o melhor que o dinheiro pode comprar – mas nunca te falam que isso não será o suficiente.

    Há pessoas que aprendem isso mais cedo na vida. E outras, na velhice ainda continuam nessa rotina de consumo.

    Gosto muito dessa frase de Zygmunt Bauman

    “A sociedade de consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a não-satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios termos, a infelicidade deles). ”

    Abraços,

  7. Adorei o texto! Considero o seu blog como um dos melhores na Finansfera BR. Desejo que continue com as postagens frequentes e que compartilhe mais dicas de leitura, como a desse post. Obrigado!

  8. Estava justamente falando disso na terapia. Como é difícil “fazer nada”. Como que eu tenho transformado tudo em um checklist, inclusive meu lazer, tentanto otimizar o tempo livre e como isso é desgastante, em vez de tornar o ócio prazeroso.
    Obrigado por mais um texto inspirador e norteador!
    Tenho tentado fazer um exercício simples: ficar sentado ou deitado sem fazer nada, sem estar com celular na mão. É ridículo, mas não tem sido tão fácil. E eu acabo dormindo muitas vezes, o que mostra evidencia o cansaço.

  9. Excelente texto, acho que já me acostumei tanto a viver cansada, que não sei como é a outra parte, até mesmo nas férias eu sempre estou cansada, vivo com uma lista no celular ou no bolso, analisando ao final do dia o check em cada item.
    Carrego e executo meu sonho FIRE justamente esperando a hora de mudar essa forma de vida, será que vou conseguir ?

  10. Lindo texto Lilian, um verdadeiro bálsamo para a minha alma.. cansada rs Curti muito a animaçao dos ratinhos. Embora não tenha saído ainda da corrida dos ratos, me sinto privilegiado de ao menos ter essa visão, esse objetivo, essa consciência da importância de uma hora dar um basta. A maioria das pessoas não têm. E pra mim essa hora já está marcada, o que me traz felicidade. Textos como os seus servem como um norte, um alívio no meio dessa corrida , portanto, obrigado!

  11. Adorei o texto, pois foi muito esclarecedor. Me fez refletir sobre como quero que a minha vida seja após o FIRE. Eu quero uma vida despretensiosa, vivendo um dia após o outro, sem o cansaço das ‘obrigações’ que impomos a nós mesmos, curtindo a minha família e criando meus filhos para conseguirem aproveitar a vida o quanto antes.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *