A crise do conforto

Domingo passado, eu estava voltando para casa de ônibus quando um morador de rua entrou e se sentou ao meu lado. Ele tinha aquele odor típico de alguém que não toma banho há um bom tempo. Meu impulso foi me levantar e sair do ônibus, xingando-me internamente por não ter pego um Uber. Afinal, desde que o prefeito decidiu zerar a cobrança dos ônibus aos domingos, isso tem sido cada vez mais frequente.

Mas eu decidi ficar. Aquilo estava totalmente fora da minha zona de conforto, e eu senti que precisava passar por isso. Permaneci até o final do trajeto, concentrando-me em respirar pela boca ao invés do nariz. E qual não foi o meu alívio quando finalmente desci do ônibus, cheguei em casa e pude tomar um banho cheiroso e relaxante.

O ponto aqui é que esse banho não teria tido o mesmo valor se eu tivesse pego um Uber. Ele foi muito valioso para mim porque passei pela situação desconfortável de me sentar ao lado de um morador de rua no ônibus.

Eu jamais teria topado ficar nesse ônibus se não estivesse lendo um livro novo, chamado A crise do Conforto. Esse livro foi uma indicação de um leitor do blog, e eu recomendo fortemente para quem quer parar de olhar a vida pela ótica da privação e começar a olhar pela ótica do excesso de conforto em que vivemos.

Nós não temos que ficar confortáveis o tempo todo

O autor do livro fez uma expedição ao Alasca ao longo de 33 dias, durante a qual experimentou diversas situações de desconforto típicas dos nossos antepassados. Ele enfrentou temperaturas extremas, passou fome enquanto esperava para caçar um animal para comer, dormiu de forma desconfortável e ficou isolado do resto do mundo, sem acesso à internet.

Após esse período de desconforto, quando finalmente voltou a uma situação em que podia acessar comida facilmente e matar o tédio com o celular, ele sentiu uma sensação maravilhosa. Foi ao abrir mão do conforto que ele passou a valorizá-lo. O famoso “só dá valor quando perde”.

Durante a maior parte do tempo, os seres humanos viveram no desconforto que o autor enfrentou durante os 33 dias de expedição. Talvez até em um desconforto pior, sem roupas adequadas. E 99,99% da nossa evolução genética veio da busca para escapar de situações de desconforto para alcançar o conforto.

O problema é que hoje experimentamos pouco essa transição. Vivemos no conforto a maior parte do tempo. Passamos a maior parte do tempo dentro de ambientes com temperatura controlada por ar-condicionado. Podemos pedir comida sentados no sofá enquanto assistimos ao streaming. E nem mesmo permitimos o desconforto de ficarmos sozinhos com nossos pensamentos, já que vivemos nos distraindo com as redes sociais. Até a conversa de elevador, uma situação constrangedora, foi eliminada com a chegada dos smartphones.

E quais são os riscos de uma vida sempre confortável?

O livro cita um conceito super interessante desenvolvido por pesquisadores de Harvard chamado “mudança de conceito induzida pela prevalência”. O nome é complicado, e talvez eu não tenha feito uma boa tradução do termo (eu li o livro em inglês), mas ele representa um fenômeno psicológico que você provavelmente já experimentou.

Um bom exemplo é o seguinte: imagine que uma cidade tem um problema com crimes, especialmente assaltos. O governo implementa várias medidas, como patrulhas policiais aumentadas e programas de conscientização comunitária, que reduzem com sucesso a taxa de criminalidade geral. Como resultado, as pessoas podem começar a considerar comportamentos que antes eram vistos como delitos menores, como pequenos furtos, como problemas mais sérios do que antes das intervenções. Essa mudança na percepção acontece porque a prevalência de crimes graves diminuiu, levando a uma mudança no que constitui um problema significativo.

Esse conceito é super importante para entender a crise do conforto que vivemos. A busca por conforto é importante, e nossa vida hoje é a mais confortável de toda a história. Pessoas de classe média, com acesso a esgoto encanado, vivem com mais conforto do que a corte real portuguesa quando veio morar no Brasil em 1808.

Mas a grande maioria das pessoas não enxerga isso. Poucas pessoas acham que a vida é melhor agora.

E por que? Porque estamos sempre mudando nossa meta. É aquela velha história de “deixar a meta em aberto, mas dobrar a meta quando a gente chegar lá” (perdoem a referência, mas não pude evitar a piada!).

Essa nossa mania de ver problema em tudo e querer sempre melhorar faz total sentido do ponto de vista evolutivo. No passado, quando o mundo era muito hostil e enfrentávamos situações de vida ou morte, antecipar problemas foi uma arma poderosa de sobrevivência.

Mas hoje, com uma vida bem mais confortável, passamos a enxergar problema onde não tem.

Nesse ponto do livro, é impossível não pensar na nossa relação atual com o celular. Ou melhor, com o smartphone.

Se você ficar sem celular, seja porque foi roubado ou porque esqueceu em algum lugar, provavelmente vai sentir que tem um problema muito maior do que realmente tem. É claro que navegar sem a ajuda do Google Maps ou se comunicar sem o WhatsApp fica muito mais difícil, mas não é uma questão de vida ou morte.

O autor do livro traz várias consequências interessantes sobre essa vida confortável, desde a crise de obesidade que enfrentamos hoje até a crise mental, com um número recorde de pessoas diagnosticadas com depressão ou ansiedade.

Mas a discussão mais interessante para mim foi em relação ao tédio. Ele cita o dia 29 de junho de 2007 como o fim do tédio. Esse foi o dia do lançamento do iPhone.

Os dados são assustadores: os brasileiros passam em média 9 horas por dia em frente a telas de computador e celular. E imagino que, se a pesquisa incluísse tempo de TV, o número seria assustadoramente maior.

O problema do fim do tédio é que as pessoas não passam mais tempo sozinhas com seus próprios pensamentos. Antes, quando a tecnologia não era tão onipresente, frequentemente nos encontrávamos em situações em que não havia muito o que fazer, como por exemplo, esperar em uma fila, viajar em transporte público, ou até mesmo durante momentos de pausa no trabalho.

Mas o tédio é importante. Segundo o autor do livro, o tédio significa “faça alguma coisa”. Quando ele estava caçando, percebeu que caçar significava passar 99,99% do tempo entediado e 0,01% do tempo com medo de morrer. E sua mente ficou extremamente criativa durante esse tempo. Provavelmente foi graças ao tédio que evoluímos. Talvez tenha sido o tédio de caçar (e não apenas o medo de morrer) que levou o homem a buscar na agricultura uma forma mais eficiente de se alimentar.

O desconforto do tédio nos tornou mais criativos e, consequentemente, nos fez avançar para formas mais produtivas.

É claro que viver uma vida devota ao tédio não é a solução. O autor definitivamente não defende viver como nossos antepassados e queimar nossos celulares. A vida não era melhor quando estávamos lutando pela nossa sobrevivência boa parte do tempo.

O que ele defende é trazer um pouco de desconforto de volta às nossas vidas. É atingir um equilíbrio perfeito entre conforto e desconforto.

O equilíbrio perfeito

A melhor analogia para demonstrar a importância de sairmos da nossa zona de conforto, mas também sabermos descansar, é a construção de músculos.

Sou formada em ballet clássico, amo dançar e, por muito tempo, sair para correr era a minha atividade física preferida. Acho que posso falar por muitas mulheres quando digo que, no início da minha vida adulta, o foco era muito mais em ser magra do que em ter músculos. Isso fez com que eu priorizasse os exercícios aeróbicos em detrimento da musculação por muito tempo.

Mas, em paralelo à construção de uma vida mais independente do ponto de vista financeiro, eu também comecei a vislumbrar a construção de uma vida melhor e mais longa para mim. Foi então que percebi que fazer atividade física apenas com o objetivo de ter uma barriga perfeita era pouco útil, além de impossível para o meu biotipo. O alerta final veio de uma nutricionista que me disse: “Lilian, se você quer envelhecer bem, você precisa de músculos!”.

A primeira vez que fiz musculação, mal conseguia andar no dia seguinte. Desesperada com a dor, pesquisei para entender o que estava acontecendo comigo e se aquilo era normal. Descobri que era, e que mais: aquele era um sinal positivo de que o exercício tinha sido bem feito.

Conforme fui aprendendo sobre a construção de músculos, percebi que o mais eficiente é usar sobrecarga e “estressar” o músculo. Depois do estresse, é necessário descansar para que ele se recupere. E é nessa recuperação que ele se fortalece. A construção dos músculos só acontece por conta de um equilíbrio perfeito entre situações de desconforto e situações de conforto.

Ficar sentado em uma posição confortável o tempo todo enfraquece o corpo. Mas tirá-lo da zona de conforto e depois descansar é o que o fortalece. É o desconforto mais o conforto que causa a mudança!

A crise do conforto e as nossas finanças

Uma das maiores críticas que ouço sobre o movimento FIRE (Financial Independence, Retire Early) é que vivemos uma vida de privação com o objetivo final de juntar algum patrimônio, que costuma ser menor do que as pessoas acham necessário, e então passamos a viver essa vida medíocre para o resto da vida.

Só que os conceitos de “privação” e “vida medíocre” são relativos. Talvez, para os membros da comunidade FIRE, privação seja ter que trabalhar em um emprego que os faz infelizes. Talvez, para os críticos, privação seja não poder gastar 100% do salário. Talvez, para os membros da comunidade FIRE, vida medíocre seja deixar para curtir a vida apenas aos 60 anos de idade. Talvez, para os críticos, vida medíocre seja andar de bicicleta em vez de dirigir um carro importado.

Só que o pulo do gato aqui é que a nossa vida FIRE, aparentemente desconfortável, pode ser muito benéfica.

Às vezes, na ansiedade por antecipar nossa independência financeira, testamos os limites do nosso orçamento. Com quão pouco conseguimos viver por mês? Qual o máximo de desconforto que toleramos?

Você não precisa viver assim para sempre. Depois de viver com o mínimo por um tempo, pode decidir que essa vida é muito desconfortável. E que tudo bem trabalhar mais alguns anos para adicionar um pouco de conforto. Ou arranjar outro tipo de trabalho que gere renda durante a aposentadoria.

Mas o ganho de saber que você consegue viver com pouco está lá. Você já provou que é possível, apesar de desconfortável. E dependendo de quão radical foi no processo, aprende a valorizar os confortos simples. Você evita a crise do conforto.

Abaixo, listo uma série de confortos dos quais abri mão e, depois, introduzi de forma muito mais simples e dando muito mais valor:

Moradia – Durante 1 ano, vivi em um trailer de 6 m², onde tínhamos que nos preocupar com questões básicas como “teremos água ou energia o suficiente?” e “onde vamos descartar nosso esgoto?”. Hoje, divido um apartamento de 75 m² com meu marido e brinco com as minhas amigas que me sinto em uma mansão.

Transporte – Recentemente, meu marido pegou uma gripe chata e estávamos pensando em como ir de ônibus para o médico (nosso padrão), até que me lembrei de que poderíamos simplesmente pegar um táxi.

Cabeleireiro – Eliminei as idas frequentes ao salão de beleza da minha vida. Corto meu cabelo em casa e cuido sozinha das minhas unhas. Mas eu detestava tingir os cabelos. Hoje, volto ao salão só para isso e fico muito feliz de saber que posso pagar alguém para colorir meus fios de cabelo branco enquanto leio um livro!

E vocês? Conseguem valorizar os pequenos confortos no dia a dia? Ou estão presos na crise do conforto?

22 respostas

  1. Olá Lilian, obrigado pelo texto, bastante inspirador. Também já li mais de uma vez todos os livros do Nicholas Taleb, é um farol de racionalidade nesse mar de conversa fiada literária. Gostaria de fazer um adendo: o desconforto também se aplica ao aprendizado, pois aprender e praticar o que se aprendeu dói e é desconfortável. No meu caso, já que sou um desenvolvedor de software, aprender um novo conceito, uma nova tecnologia pode ser bem frustrante (às vezes dá vontade de arrancar os cabelos) mas ao final é gratificante. O desconforto vale a pena! Digo por experiência própria. Inclusive existe um vídeo famoso, e bem inspirador, do Clóvis de Barros que fala sobre o “brio” e a experiência de atravessar um conhecimento novo, o desconforto da coisa, vale a pena assistir – além de ser cômico. Abraço.

    1. Oi Tiago!
      Maravilhoso esse vídeo, não conhecia e acabei de ver!
      Realmente, adquirir conhecimento é um processo desconfortável, mas fortalece. E como fortalece!
      Sabe que o meu passatempo favorito na vida de aposentada tem sido estudar filosofia? Começou com alguns programas no Youtube, agora já partir para ler livros. E é muito desafiador.
      O que motiva é a admiração que eu sinto por pessoas que conseguem sintetizar o conhecimento em teorias. Que explicam dores humanas tão complexas e tão permanentes. Eu sinto que adquirir esse conhecimento vai sim me fortalecer. Mas exige esforço, sem dúvidas.
      E é por isso que hoje tem tanta informação rasa circulando por aí. Informação mesmo, e pouco conhecimento. Somadas a crise das fake news. Talvez porque seja mais confortável assumir uma fake news, do que entender o quão complexa pode ser uma notícia mais verdadeira, mais real.
      Abs! E obrigada pelo vídeo!

      1. Assim como para você, a filosofia tem sido um dos meus maiores interesses nos últimos anos. Penso que levar uma vida financeiramente independente e a valorização do tempo (nosso maior ativo) está intrinsecamente ligada aos ensinamentos filosóficos. Há séculos os filósofos tem identificado as nossas aflições e angústias, parece que a vida se repete, é algo cíclico – as sociedades se modificam, mas os problemas se repetem. Penso que diferente da auto ajuda mastigável (que abomino), a filosofia procura fazer você refletir e achar a solução por si só.
        Gosto principalmente da filosofia aplicada à vida prática, como os escritos dos estoicos: Sêneca, Marco Aurélio e Epicteto. Inclusive o minimalismo e o desprendimento são um dos ensinamentos do estoicismo: o que é curioso, pois Sêneca foi um dos mais ricos de seu tempo e Marco Aurélio, o imperador.
        Abs.

  2. Aposentada, você já leu o livro “Antifrágil”? Isso que você definiu nesse post como essa dualidade conforto-desconforto é bem parecido com o que o autor do livro define como frágil-antifrágil. Até o exemplo que você usou da musculação ele também usa, falando que esse ato de estressar os músculos pra fortalece-los é um ato de torna-los antifrágeis, hehe. Muito bom o post!

    Abraço.
    https://engenheirotardio.blogspot.com

    1. Li sim. Aliás, durante meu sabático, eu li todos os livros do Taleb. Eu considero ele um dos filósofos mais interessantes para quem quer viver de renda!
      Provavelmente foi da minha memória do Antifragil que eu tirei esse exemplo, rs.
      Abs!

  3. Interessante esse post. Eu nunca tinha parado pra pensar sobre essa ótica de conforto como exagerado. Parece uma antítese: conforto e crise! Mas faz total sentido…

  4. Só sei que hoje eu tive que sair pra fazer um exame e a clínica fica a uns 25 minutos de caminhada, ia chamar um Uber mas lembrei da Aposentada aos Trinta, e pensei ” certamente ela iria a pé”, e acabei indo a pé mesmo rs

  5. Interessante a reflexão! Realmente precisamos estar alertas para manter um equilíbrio no conforto e colocar em xeque a adaptação hedônica.
    Eu, por exemplo, também me sinto um usuário excessivo de celular e volta e meia me sinto capturado pelos algoritmos de scrolling, rs.
    Aproveito para partilhar um artigo que acho muito bom sobre uma possível abordagem para essas questões , a do estoicismo:
    https://www.gurwinder.blog/p/stoicism-the-ancient-remedy-to-the
    Agradeço por ter trazido esse tema à tona, vou aproveitar para ler o livro Meditações do Marco Aurélio que planejei ler mas tinha esquecido!
    Abs,

    1. Oi AF!
      Caramba, texto incrível e super completo sobre estoicismo. Muito legal, obrigada por compartilhar!
      E somos dois. Tb me vejo presa ao celular, mesmo tendo vários mecanismos de escape.
      É muito confortável, mas qual o custo de ficar no sofá scrolling?

  6. Que texto bacana, você sempre muito inspiradora.
    Ocupo um cargo de gestão na empresa que trabalho atualmente, tenho um carro popular 2014, enquanto quase todos meus colaboradores tem carros melhores e mais novos que o meu, esse é meu desconforto, mas estou lidando muito bem com isso até agora.

    1. Oi Suzana!
      Vc já sabe minha rixa com carros né? rs
      Se eu precisasse muito de um (e quando eu preciso é o tipo q alugo), teria um carro popular.
      Algo que não me deixasse muito apegada, que custasse pouco, q não fosse um símbolo de status e um detrator de carteira! rs

  7. Fantástico. Preciso ler este livro.
    Mas FIRE é isto mesmo, abrir mão do conforto imediato, sofrer em um emprego ruim para depois darmos valor ao que conquistamos. FIRE é igual sentar no onibus ao lado do mendigo por 15 anos e FIRE é o banho quando chegarmos em casa. Abcs

  8. Olá Lilian, bom dia

    Um artigo muito inspirador, compartilho do seu posicionamento. Há dois meses atrás, em uma conversa com um amigo que deixou a empresa disse-me uma frase que faz todo o sentido com seu artigo: “Devemos deixar nossa zona de conforto e partir para a zona de confronto”.

    No caso do meu amigo, ele saiu do “conforto” de um emprego CLT e “confrontou” o mundo empreendedor, apesar de todos os desafios e incertezas. É oportunidade incrível se colocar numa zona desconfortável de maneira equilibrada e saber se comportar.

    Abraços,

    1. Adorei a frase! Quem disse que a zona de confronto é sempre ruim?
      Que legal a coragem dele. Eu estou de certa forma empreendendo aqui, com a consultoria. É algo bem fora da zona de conforto. Talvez eu esteja numa posição mais confortável por ter a IF. Mas sem dúvidas, é uma vida bem mais incerta que a CLT.

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