Os Paradoxos da Vida FIRE – parte 3

Caros, este texto é uma continuação do último post. Para você entender de onde vieram esses questionamentos e a necessidade de deliberá-los, por favor, leia a parte 1 e a parte 2. Ainda assim, os textos são independentes entre si, então você não perde nada se ler apenas este aqui.

O Paradoxo do Descarte: Presente versus Futuro

Por fim, o paradoxo que eu considerei mais intrigantes, conforme abordado pelo filósofo, é a ideia da quebra temporal da vida, entre uma vida de trabalho até os 30 anos de idade e uma vida completamente diferente, uma vida que descarta a vida até então após os 30 anos de idade.

Afinal de contas, os seguidores do movimento FIRE são incentivados a trabalhar intensamente por um período reduzido, acumulando cada vez mais riquezas e poupando agressivamente, para que possam construir um patrimônio suficiente que permita viver de renda no futuro. A recompensa? Uma vida onde o trabalho não mais dita o ritmo dos seus dias.

No entanto, ao atingir essa meta, é como se a vida que você viveu até então fosse simplesmente descartada, como se tivesse sido apenas uma fase transitória.

Essa lógica de descarte é profundamente enraizada na própria essência do capitalismo. Como bem descreveu o filósofo Zygmunt Bauman, a vida na modernidade líquida é marcada pela impermanência. Nada é fixo, nada é sólido, e tudo está em constante estado de fluxo e mudança. Nessa vida líquida, os bens que adquirimos, as relações que cultivamos, e até mesmo as nossas experiências de vida, tornam-se efêmeros, passíveis de serem descartados em nome de algo novo, algo potencialmente melhor.

Isso nos leva a um questionamento ainda mais profundo: será que o movimento FIRE realmente prega uma vida tão diferente daquela que os demais seguem?

A busca pela liberdade financeira, nessa perspectiva, pode acabar sendo uma nova versão da busca por mais riqueza, mais controle, mais segurança — em resumo, mais do mesmo. A diferença talvez esteja apenas no tempo em que isso é alcançado, mas não na natureza do processo em si.

Esse dilema não tem uma resposta simples, mas é uma reflexão que o filósofo propõe a todos que almejam a independência financeira precisam fazer. O movimento FIRE realmente oferece uma alternativa ou apenas repete, sob uma nova roupagem, a mesma lógica de sempre? Ou será que, ao fazer isso, estamos perpetuando a mesma lógica que tentamos escapar — a lógica capitalista do descarte, onde tudo é visto como transitório e nada é valorizado em sua plenitude no momento em que ocorre?

O Descarte da Minha Vida Anterior: Como Encarei a Mudança

Eu devo confessar que abandonar minha vida anterior não foi fácil. Talvez, se meu marido não estivesse embarcado nessa jornada comigo, eu não tivesse conseguido. Talvez, se eu não tivesse comprado um trailer e planejado uma viagem de um ano, eu teria hesitado quando meu chefe perguntou: “Não há nada que eu possa fazer para você ficar?”. Talvez, se eu não tivesse um blog na época, se eu não tivesse compartilhado meu sonho de me aposentar cedo com tantas pessoas ao meu redor, eu não teria sentido a pressão social de seguir em frente com o plano e poderia ter ficado.

Uma vez, uma terapeuta me disse: “Quando a dor de ficar é maior que a dor de mudar, a gente muda”. Eu amo essa frase, porque ela reforça que ambos os processos são dolorosos. Dói ficar e dói mudar.

Às vezes, me pego pensando em como seria minha vida se eu tivesse ficado. Será que eu estaria encarando o trabalho de forma mais leve com a independência financeira, como tantos planejam fazer (atingir a IF e continuar trabalhando)? E quanto mais patrimônio eu teria acumulado?

Mas, quando paro e reflito sobre tudo o que vivi nos últimos quase quatro anos, vejo que o saldo é positivo. Muito positivo. Se eu tivesse mantido minha vida anterior, não teria passado um ano inteiro viajando com meu marido, desbravando o Brasil. Não teria realizado o sonho de morar uns meses em Paris. Não teria tido dias de semana para estar com minha família e amigos, em momentos críticos em que eles precisavam de mim. Não teria tido o tempo para cuidar do meu corpo e mente. Não teria começado este blog. E não teria iniciado a consultoria que eu tanto amo.

A vida que eu deixei para trás não era horrível. Era apenas uma vida sem tempo – ou melhor, com muito tempo dedicado a uma só coisa: o trabalho. E quando você elimina algo que ocupa tanto espaço na sua vida, parece que está descartando uma parte significativa de si.

E é por isso que eu insisto tanto que as pessoas se aposentem para algo, e não de algo. Preparar-se para essa nova fase é fundamental. Começar com uma viagem de um ano foi uma ótima base para mim. Outros começam com um novo trabalho. Alguns mudam de país. O entusiasmo pelo novo tem que ser maior do que a dor de deixar o que ficou para trás.

Confrontando os Paradoxos

O curioso é que no final da palestra (que motivou essa série de posts), o filósofo abriu uma sessão de debate com a plateia. E essas críticas, mais superficiais na minha visão, foram as de sempre. Dois deles questionaram se é possível sustentar essa vida sem renunciar a certos valores sociais, como o desejo de constituir uma família, já que a responsabilidade de criar filhos e sustentar um parceiro, por exemplo, pode comprometer a capacidade de manter um controle rígido sobre os gastos. Outro acusou o movimento de promover uma fuga em vez de enfrentar e reformar o sistema por dentro.

Já as indagações do filósofo me levaram a um ponto crucial: a vida FIRE não é apenas uma questão de números e cálculos econômicos, mas também de valores, identidade e, sobretudo, de escolhas conscientes.

A questão central talvez não seja apenas “como alcançar a independência financeira”, mas “qual é o verdadeiro sentido de uma vida financeiramente independente?”.

Isso foi particularmente interessante para mim porque eu acredito que o “como”, a matemática, já está muito bem respondida nos posts disponíveis nesse blog. Talvez eu precise gastar mais tempo com a segunda questão.

Será que estamos prontos para lidar com a liberdade que ela nos proporciona, ou ainda estamos presos às amarras de um sistema que nos faz acreditar que precisamos de mais, sempre mais?

Neste ponto, vale questionar até que ponto a busca pela independência financeira é uma forma de liberdade ou apenas uma nova forma de escravidão. Em nossa tentativa de escapar das correntes do trabalho tradicional, podemos inadvertidamente criar novas correntes, que são igualmente poderosas. A pressão para atingir metas financeiras, para cortar custos e para investir sabiamente pode se tornar tão opressiva quanto o próprio trabalho que estamos tentando evitar. Vide a quantidade de blogs sobre o tema no Brasil que compartilham apenas números. A liberdade prometida pelo movimento FIRE pode, paradoxalmente, se transformar em uma nova forma de servidão.

Eu acredito que a missão não acaba quando a gente atinge a independência financeira. Quando a gente pode se dar ao luxo de não precisar mais trabalhar para pagar as contas, é aí que devemos aproveitar o tempo livre para repensar o que realmente importa, para redescobrir o valor do tempo e, sobretudo, para questionar os paradoxos que nos cercam. E, quem sabe, encontrar um equilíbrio entre o presente e o futuro, entre o dinheiro e os desejos, entre o trabalho e o ócio.

Porque, no fim das contas, talvez o que estamos buscando não seja apenas a independência financeira, mas a liberdade de sermos verdadeiramente nós mesmos.

11 respostas

  1. A pressao pra atingir metas financeiras e cortas gastos pode se tornar opressiva como vc diz mas ha uma diferença fundamental. é algo que vc faz pra vc mesmo, nao pra encher os bolsos do seu patrão. É a boa opressão, se é que existe algo assim.

  2. Gosto muito da abordagem que você tem trazido pra FIREsfera, Lilian.
    Não necessariamente concordo com alguns posicionamentos, até porque somos todos diferentes, mas a riqueza de pensamentos e discussões que podem surgir disso é o que mais me cativa.

    Obrigado por reservar parte do seu tempo para dividir seus próprios questionamentos, é de uma coragem sem tamanho.

  3. Olá, Lilian

    Adorei a leitura, as questões de valores e auto avaliação são o ponto chave para a transformação da vida, fazer contas é uma minúscula ferramenta.

    Acho que nossa forma de ver o mundo e lidar com elas deve se transformar para ter segurança e clareza para não vacilar com a pressão social e a o cotidiano deste mundo capitalista moderno que deixa nosso corpo e mente doentes.

  4. As reflexões desta série Paradoxos da Vida FIRE são excelentes, Lilian. Minha opinião é que na sigla do movimento, o FI é muitíssimo mais importante que o RE, porque traz liberdade inclusive para você mudar de ideia quanto a seguir trabalhando ou não. Uma rotina estressante para mim, pode ser prazerosa para outra pessoa. Mas a gente muda ao longo da vida, e ser independente financeiramente te permite justamente mudar de ideia e parar ou não quando quiser, após atingir a independência. Inclusive porque torna a jornada tão ou mais importante que o objetivo temporal. Abraço.

    1. Oi Anon!
      Sem dúvidas, até porque hoje tenho uma atividade remunerada (minhas consultorias de planejamento financeiro!).
      É engraçado como eu não enxergo como algo contraditório a vida de aposentada. Sei que só consigo levar a consultoria com a leveza e dedicação que ela merece porque não tenho a pressão de pagar as contas no final do mês com ela!

  5. Acho que se aposentar dá um bug na gente, porque enquanto vivemos pré FIRE, o dinheiro é quase que a essência do viver, pensamos sempre sobre o quanto poupar, onde investir, quanto ganhar, quanto economizar e etc. E a vida pós FIRE parece te jogar quase que no extremo oposto(ainda que as questões de controlar as finanças e onde reinvestir ainda existam), ou seja, agora sua vida vai muito além do dinheiro, e isso é muito assustador porque enquanto você não tinha grana o suficiente, você nunca teve tempo pra pensar sobre isso, mas agora você tem e se depara com esse novo dilema, que me parece mais interessante e de fato discute mais a essência humana e o que te faz feliz, tanto que os filósofos estão tentando achar a resposta e até agora não chegamos a uma conclusão(se é que existe)
    Abraços

    1. exatamente, mas eu penso que esse bug invariavelmente deve dar em quem ganha um premio na loteria ou uma herança inesperada. Para nós mortais que estamos dando o sangue por anos e anos para um dia chegar ao FIRE, podemos evitar pq temos tempo para nos preparar. Afinal, POR QUE queremos nos aposentar cedo? O objetivo geral é a liberdade, mas no fundo, cada pessoa deve ter um motivo diferente, e cabe a cada um descobrir… Um fato comum a todos é: se fixar em só atingir um numero no banco sem imaginar como vc quer que seja sua vida, é pedir para se decepcionar ou entrar em depressão depois por falta de propósito.

    2. Oi Well! Acho que minha obsessão por filosofia na vida pós FIRE é justamente essa: o que eles já descobriram sobre o verdadeiro sentido da vida!
      Depois de conquistar algo tão grandioso, e tão libertador, quanto a IF, é difícil não pensar no sentido de tudo.
      Abs!

  6. Precisei reler o texto ao chegar em casa para anotar alguns trechos no meu caderno de finanças. Você não sabe como é uma pessoa inspiradora, Lilian!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *