Os Paradoxos da Vida FIRE – Parte 2

Caros, este texto é uma continuação do último post. Para você entender de onde vieram esses questionamentos e a necessidade de deliberá-los, por favor, leia a parte 1. Ainda assim, os textos são independentes entre si, então você não perde nada se ler apenas este aqui.

O Paradoxo Capitalista: Depender de um Sistema que Buscamos Evitar

A filosofia FIRE prega a redução do consumo e a vida simples, mas, para alcançar a independência financeira, dependemos da rentabilidade dos nossos investimentos — rentabilidade essa que está profundamente enraizada no capitalismo, que se alimenta do consumo e o alimenta.

É aqui que surge o segundo paradoxo destacado pelo filósofo: se todos decidissem parar de consumir e viver uma vida simples, o crescimento econômico que sustenta o mercado financeiro desmoronaria, tornando insustentável a própria lógica FIRE.

Em outras palavras, o movimento que critica o consumo excessivo é, paradoxalmente, sustentado pelo mesmo sistema que alimenta esse excesso.

Já ouvi muita gente dizer que espera que o movimento FIRE não se torne popular, porque, se isso acontecer, as pessoas vão parar de consumir em excesso, e as empresas deixarão de lucrar com esse consumismo, o que pode comprometer a rentabilidade dos nossos investimentos em ações.

E se essa moda de gastar pouco chegar ao governo brasileiro, também poderíamos dizer “adeus” à alta rentabilidade dos títulos públicos no Brasil. Imagina só se o governo brasileiro começar a gerar superávits fiscais e conseguir reduzir a sua dívida pública? Como se aposentar quando o Tesouro Direto estiver pagando apenas IPCA + 0,5%, como nos EUA?

Será que, de certa forma, estamos presos a um ciclo em que nossas ações, por mais que tenham a intenção de nos libertar, acabam reforçando o sistema que buscamos questionar?

Eu consigo entender o apelo dos argumentos acima, mas eles estão incorretos. Vamos por partes!

E se o governo brasileiro parar de ser gastão?

Com relação ao nível elevado dos juros no Brasil, eu realmente acredito que estamos caminhando para juros menores no longo prazo. Parece loucura dizer isso, especialmente diante dos últimos desdobramentos da crise fiscal no Brasil (escrevo este texto em outubro de 2024).

Mas esses desvios de curto prazo fazem parte do jogo. Eu já escrevi aqui que os juros sempre caem. E, quando digo isso, estou olhando para a tendência de longo prazo dos juros no Brasil, que tem, de fato, sido de queda. Quando olhamos uma série histórica dos juros no Brasil, fica claro que os picos e os vales da Selic estão cada vez menores. Juros de 14% hoje parecem altos, mas há 20 anos esses juros teriam sido considerados moderados. Em 2003, o pico da Selic foi de 26,5%.

A conquista desses juros mais baixos no Brasil foi resultado de diversos avanços institucionais que permitiram que o país convivesse com uma taxa básica de juros menor. Exemplos disso incluem o Plano Real, que trouxe a inflação sob controle (em contraste com o risco de hiperinflação nos anos 90), o desenvolvimento do mercado de crédito com melhorias na infraestrutura financeira do país e a recente aprovação da autonomia do Banco Central.

Como eu disse, é claro que continuaremos vendo desvios de curto prazo dessa tendência de queda da Selic, mas tenho elevada confiança de que, daqui a 30 anos, não será mais possível traçar uma estratégia FIRE no Brasil apenas com títulos públicos.

E isso é uma boa notícia. Na verdade, é uma excelente notícia!

Juros menores significam que o país está mais desenvolvido, mais competitivo e que nossas empresas estarão mais fortes. Esse será o momento de migrarmos nossos investimentos da renda fixa para a renda variável.

Então, eu não acho que o movimento FIRE dependa de um governo gastão no Brasil. Hoje, podemos aproveitar essa “falha” do governo a nosso favor, garantindo uma aposentadoria tranquila apenas com investimentos em renda fixa. Mas o movimento não depende só disso.

Até porque nossos amigos norte-americanos, onde o movimento FIRE é muito mais forte, não dependem de juros altos para se aposentarem. Lá, os investimentos são muito mais concentrados em renda variável, o que acredito ser o caminho natural para nós brasileiros no longo prazo.

Mas aí surge a segunda indagação: o mercado de renda variável continuaria sendo uma estratégia viável para o FIRE caso o mundo todo parasse de consumir tanto?

E se todo mundo parasse de ser gastão?

Para argumentar que o movimento FIRE pode conquistar o mundo sem aniquilar a sua própria existência, vou recorrer ao argumento do meu ídolo no movimento, o Mr. Money Mustache.

Como ele argumenta, apesar da mídia, dos governos e das pessoas comuns adorarem dizer que o que move a economia é o consumo, alguns economistas defendem que o excesso de consumo é, na verdade, um detrator da economia.

Você provavelmente já ouviu a famosa história de Robinson Crusoé. Crusoé é um náufrago que, isolado em uma ilha deserta, precisa aprender a sobreviver e construir sua existência a partir dos recursos limitados disponíveis.

Todo dia, Crusoé sai para pescar com apenas uma linha e um anzol, o que é bem ineficiente. Ele percebe que precisa desenvolver uma ferramenta mais eficiente, mas, como todos os dias precisa garantir sua subsistência, não tem tempo para construir essas ferramentas.

Então, Crusoé tem uma ideia genial. Em vez de consumir toda a sua pescaria do dia, ele poupa uma parte para o dia seguinte. Assim, como a comida já está garantida, ele tem tempo para começar a produzir uma rede de pesca. Ele repete esse ciclo por alguns dias, até que a rede está pronta, tornando a pesca muito mais eficiente. Com mais tempo livre, Crusoé pode se dedicar a construir outros utensílios que melhoram sua alimentação e até mesmo uma casa.

Esse comportamento é uma analogia direta ao conceito econômico de investimento: sacrificar o consumo imediato (tempo e trabalho) para garantir um retorno maior no futuro (comida, segurança, conforto).

Como descreveu lindamente o Mr. Money Mustache:

 Qual é o motor do crescimento, então? São os poupadores e investidores. Somente ao sacrificar o consumo atual, as pessoas podem colocar dinheiro em bancos ou em ofertas de ações, que acabam nas mãos de empresas novas e já existentes, permitindo que essas empresas utilizem o dinheiro para criar novas tecnologias, fábricas ou capital humano, aumentando assim sua produtividade. O capital cria produtividade, e a produtividade é o que impulsiona nosso padrão de vida.

Agora, você deve estar se perguntando: “Ok, se todo mundo investisse, conseguiríamos produzir muito mais coisas. Mas, para que isso traga lucro para as empresas, ainda precisaríamos de consumidores, certo?”

Em parte, sim. O consumo traz receita para as empresas, e sempre precisaremos de consumidores.

Mas o lucro, que é o que importa para nós acionistas, é basicamente o que sobra da receita para a empresa após ela pagar todos os seus custos. Ele é calculado subtraindo os custos da receita (dinheiro que a empresa recebe com suas vendas). Portanto, se uma empresa conseguir aumentar a diferença entre receita e custos, seu lucro aumentará.

O ponto aqui é que o aumento da produtividade, que envolve fazer mais com menos recursos (tempo, trabalho, materiais), pode reduzir os custos. Se as empresas conseguem ser mais eficientes, elas precisam gastar menos para produzir a mesma quantidade de bens ou serviços. Assim, mesmo que as pessoas consumam menos (e a receita caia um pouco), as empresas ainda podem manter ou até aumentar seus lucros, porque os custos também foram reduzidos.

Portanto, a mensagem é: mesmo que o consumo caia, o aumento da produtividade pode compensar essa queda, mantendo as empresas lucrativas.

Claro, isso pode atingir um limite. Os custos só podem cair até certo ponto. E, depois disso, como faremos para continuar aumentando o lucro das empresas para que paguem dividendos que sustentem nossa aposentadoria?

É óbvio que algum nível de consumo sempre existirá. Afinal, se fosse possível viver com consumo zero, todo mundo seria FIRE, e nem precisaríamos de renda vinda dos nossos investimentos, já que aprenderíamos a viver sem consumir.

Mas acredito que podemos, sim, remodelar nosso consumo. Uma sociedade onde todos são frugais seria uma em que as pessoas deixassem de consumir por status, ou por uma confusão sobre o que é felicidade ou para aplacar o tédio. Talvez fosse uma sociedade em que as pessoas consumissem mais energia renovável, moradias que impactem menos o meio ambiente ou que investissem mais em sua educação e saúde e na de outras pessoas. Imagine uma sociedade onde as pessoas sentem mais prazer em gastar dinheiro com conhecimento do que com roupas. Já existem pessoas vivendo assim, e elas estão contribuindo para que empresas lucrem com isso.

Enfim, o ponto principal é que, se todos fossem frugais, poupassem mais e investissem mais, aumentaríamos nossa produtividade e todos lucrariam com isso. E, se migrássemos para uma sociedade que valoriza mais o consumo que melhora o mundo, em vez do consumo extrativo de hoje, as empresas continuariam se beneficiando. Só que de um consumo mais sustentável.

Talvez seja idealista demais imaginar um mundo onde todos são poupadores, o consumo é sustentável, e as pessoas têm mais tempo livre porque conseguimos produzir o necessário para nossa sobrevivência com muito menos tempo de trabalho (ops, isso já é possível hoje, mas muita gente ainda confunde luxo com necessidade).

Mas os FIRErs não precisam guardar esse segredo da vida só para si. Se todo o mundo se tornasse FIRE, o movimento continuaria de pé. Continuaríamos tendo empresas, continuaríamos investindo, e todos teriam mais tempo para viver e menos tempo dedicado ao trabalho.

Minha resposta a esse paradoxo é que, no fundo, ele não existe. Nós não dependemos de um mundo com excesso de consumo para que nossos investimentos gerem renda. Precisamos, na verdade, de mais pessoas investindo muito e consumindo menos para que todos possam prosperar.

14 respostas

  1. Eu realmente acho que isso é um paradoxo e não vejo a sua resposta como correta. O Japão é um pais com alta taxa de poupança, alta produtividade, baixo consumismo e nem por isso é um pais equilibrado do ponto de vista financeiro. Lá os trabalhadores trabalham em excesso, os investidores possuem taxa de juros negativas, possuem inflação baixa e muitas vezes deflação, o governo é extremamente endividado, o mercado de ações apresenta uma estagnação de décadas e se convive com um bolha imobiliária absurda. Claro que há muitos pontos positivos na sociedade Japonesa, mas eu tenho dúvidas sob o benefício para a sociedade do movimento FIRE. Individualmente é excelente, para um grupo pequeno saudável, mas para um grupo grande de indivíduos acredito que não é positivo nem para investidores nem para para consumidores/trabalhadores.

    1. O Japão é um ótimo exemplo, que reforça o meu ponto no texto!
      A alta taxa de poupança elevou a produtividade e fez do país a terceira maior economia do mundo! Aliás, no VT, ETF tão querido pelos FIREs, o Japão ocupa o segunda lugar na composição, destacando como existem empresas valiosas por lá!
      E mesmo tendo um consumo baixo, o consumo das famílias ainda respondem por mais de 50% do PIB no Japão… então não é uma economia ideal nos moldes como eu falei no texto ;)

  2. Olá Lilian, boa tarde

    Muito interessante a colocação desses paradoxos. O interessante é que nesse assunto do paradoxo Capitalista, somos tentados a fazer um julgamento crítico sobre a preferência dos outros. Mesmo uma parte do tema como ser “gastão”, envolve a questão do tempo, pois determinadas pessoas darão mais valor ao presente (gastar) do que outra que prefere investir (poupar).

    De toda forma, é um ótimo ensaio mental, pois somos forçados a pelo menos avaliar. Essa avaliação será, com algum grau, a questão de preferencia temporal dos nossos desejos. Seja no presente ou no futuro.

    E continue com esses artigos mais filosóficos e muito instigantes.

    Abraços,

  3. a Europa é um pouco assim né? as pessoas são naturalmente mais frugais, vivem de uma forma mais simples e consomem menos, mas coisas com qualidade melhor. Acho que é uma vida balanceada e com os ganhos de produtividade escolhem por alocar o tempo livre em lazer. São sociedades com menos malucos na rua e doentes mentais. A parte negativa é que acaba sendo uma sociedade menos inovadora com governos mais intervencionistas. mais pobres e engessados que os americanos, porém mais saudáveis e felizes.

    1. Interessante mesmo! Sempre lembro do tamanho do meu armário no apartamento que alugamos em Paris. Era minúsculo! A cozinha então, não tinha espaço para a despensa.
      Eu tb tendo a questionar se a sociedade norte-americana é um bom exemplo a ser seguido…

  4. Um exemplo em que as empresas podem vender menos e ter mais lucro é a atual indústria automobilística que desde a pandemia abandonou a venda de carros “populares” em prol de vender carros que lhes tragam maior margem de lucro.
    Vendem menos e lucram mais. O capitalismo se adapta aos diversos cenários, inclusive a uma redução do consumo, seja por qual o motivo for.

  5. O Brasil é um país de juros nominais altos porque a taxa neutra é alta, hoje 4,75% segundo o BC, sendo que nunca foi inferior a 4%, e na maior parte do tempo andou na casa dos 6%. Aquela loucura de SELIC a 2% de 2020 não deve acontecer nunca mais. Portanto para que se cumpra essa profecia de caminhar para juros menores, é necessário tanta arrumação na casa (fiscal, principalmente) que acredito que não estaremos vivos para ver juro real na casa 1-2%… rsrs… vamos aproveitar os IPCA + 6%.

  6. Legal Lilian, vira e mexe eu penso nesse paradoxo, mas além dos pontos que vc colocou, destaco mais um: nem todo mundo pretende continuar tão frugal na fase de fruição quanto na de acumulação, entao é como se essas pessoas só estivessem adiando o consumo, mas ele virá em algum momento. Eu por exemplo no ultimo vez, só com a força do ódio consegui poupar 85% do meu salario,mas quando for FIRE, da taxa de retirada de 3.5% que pretendo usar, sinceramente penso em gastar 100% desse valor, entao mesmo que tardiamente os adeptos do FIRE (exceto talvez os lean) tambem ajudarão com essa roda do consumo/capitalismo.

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