Consumo, logo existo

Em 2014, eu era economista júnior em um fundo de investimento. A designação “júnior” em meu cargo servia para destacar o quão inexperiente eu era naquele ambiente.

No fundo, apenas uma pessoa era responsável pela área comercial. Ela engravidou, e fui convidada a assumir o cargo durante sua licença maternidade.

Durante meus poucos meses na área comercial, fui ao Rio com dois sócios do fundo para visitar nossos clientes cariocas. Foi o momento em que me senti mais inútil na vida.

Nas reuniões, eu entrava muda e saía calada. Minha opinião não tinha importância, e eu me sentia apenas como uma decoração de sala.

Eu me perguntava: “Por que diabos me trouxeram para essa viagem?”. Mas logo após a segunda reunião, ficou claro a minha importância: eu estava lá para coordenar os Ubers e Táxis entre os clientes e organizar a agenda das visitas, especialmente quando uma reunião atrasava.

Na última reunião, antes de entrar na sala, o salto do meu sapato quebrou. Foi fácil disfarçar, pois ninguém realmente olhava para mim.

Voltei para São Paulo com a sensação de que precisava ser notada. Na minha imaturidade, achei que o problema estava na minha aparência. Afinal, eu estava usando um sapato tão ruim que até o salto quebrou!

Eu sabia que era inexperiente, mas sentia a necessidade de parecer mais experiente para assim ser notada.

Durante a reunião em que entrei com o sapato quebrado, percebi que a única mulher na sala usava o famoso sapato de sola vermelha. E ela falou a reunião inteira.

Então eu decidi: vou comprar um Louboutin! Assim, parecerei rica, bem-sucedida, e as pessoas vão querer me ouvir nas reuniões!

Comprei o Louboutin no mesmo final de semana.

Na segunda-feira, tinha uma reunião cedo e levei meu sapato novo. Assim que entramos no elevador, um dos sócios disse baixinho para mim: “Gostei do seu sapato novo!”.

Pronto, meu plano tinha dado certo.

Só que não.

Mais uma vez, entrei na reunião em silêncio e saí da mesma forma. O sapato de sola vermelha não ajudou em nada a superar minha inexperiência no assunto.

Foi assim que aprendi o quão imaturo era esperar por admiração apenas com base na minha aparência. A admiração vem de outro lugar.

Os anos passaram, aprendi o máximo sobre o mercado financeiro, e minha opinião nas reuniões passou a ser muito valorizada. Nunca mais usei o Louboutin, que vendi quando comecei meu plano FIRE.

Minha história é didática. Nossa ânsia por sermos notados é o que nos torna tão consumistas.

Se eu consumo, logo existo.

Mas será mesmo?

Não é imaturo achar que alguém é bem-sucedido só porque dirige um carrão, sem sequer conhecer sua situação financeira?

É perfeitamente possível que o carrão tenha sido comprado com financiamento. O que ele ostenta não é necessariamente o que possui.

Esses dias, assisti ao filme Máfia da Dor na Netflix. A personagem principal passou de uma condição de pobre para o luxo. Quando ganhou “Stock options” da empresa, avaliadas em 5 milhões de dólares, ela simplesmente ignorou um pequeno detalhe muito importante: ela precisaria esperar alguns anos para exercê-las e de fato receber o valor. E o valor da empresa poderia ser bem menor no momento do exercício.

Ela gastava como se já tivesse os 5 milhões na conta, sem compreender que era uma possibilidade futura.

Quantas pessoas não gastam como se seu salário atual fosse eterno? Simplesmente ignorando a possibilidade de serem demitidas e terem que aceitar um emprego que pague menos?

Aí vem o plot-twist da trama: a filha da empresária precisou de uma cirurgia no cérebro urgente, e ela poderia optar por uma cirurgia menos invasiva, mas que custaria 450 mil dólares. E ela não tinha esse dinheiro.

Ela usava roupas e carros luxuosos, ganhava 600 mil dólares por ano, mas não tinha 450 mil para a cirurgia da filha!

Em algum momento do filme, quando ela está consumindo loucamente, ela diz “eu nunca me senti tão viva!”. No desespero de sentir-se viva pelo consumo, ela gastou todo o salário milionário e não conseguiu proporcionar qualidade de vida à pessoa que mais amava!

Até que ponto o consumismo te faz sentir-se vivo hoje?

Se você só se sente herói quando os outros reconhecem isso, é narcisismo, não heroísmo.

Depender do reconhecimento dos outros é sinal de estar perdido.

Ouvi no primeiro episódio do podcast do Morgan Housel algo interessante sobre consumo, algo que ele chama de “man in the car paradox”. Quando vemos alguém dirigindo um carrão, praticamente ignoramos o motorista e pensamos em como seria bom se fôssemos nós ali. Nossa mente mal repara no motorista e volta o foco para nós mesmos.

O paradoxo é: compramos coisas para sermos admirados, mas as pessoas geralmente usam a riqueza dos outros apenas como modelo para si mesmas, ignorando quem está ostentando!

Quantas vezes nos preocupamos com nosso visual e mal reparamos nos outros ao redor?

Nossa mente registra o que realmente importa: quem as pessoas são, não o que elas usam.

Pense: mais de 100 bilhões de pessoas passaram pelo mundo, desconhecemos a vida da maioria delas. Quem lembramos? Dos que fizeram coisas interessantes. Lembramos de Jesus, Einstein, Marilyn Monroe, Shakespeare, Leonardo da Vinci. Não sabemos como se vestiam, que carros dirigiam, onde moravam. Lembramos de suas ideias, invenções, palavras, criatividade, pioneirismo. Não é pelo consumo que são lembrados.

Eles pensaram, então existem.

Se eu encontrar o sócio que elogiou meu Louboutin, é provável que não se lembre de ter me visto com esse sapato. Mas provavelmente ele se lembrará das nossas conversas, das trocas de ideias e do meu desenvolvimento como economista ao longo do tempo. Eu tenho certeza disso.

14 respostas

  1. Olá AP30, bom dia

    Ótimo texto que me fez lembrar de uma frase da Paula (Blog Afford Anything): “A grande maioria possui uma mesa de jantar linda, mas está repleta de faturas de cartões de crédito”.

    Receio que a normalização da dívida devido ao consumo exagerado provoca danos severos a saúde financeira das pessoas. E posteriormente a saúde mental e física.

    Tenho blindado minha mente contra a ideia de consumismo exagerado: Concentro-me em fazer boas escolhas e rejeito as escolhas comuns.

    Abraços,

  2. Eu vejo isso na prática também.. é inacreditavel, mas acontece.. por exemplo, no lugar onde trabalho, paro o meu carrinho antigo (10 anos) no estacionamento do lado de uma SUV enorme (nao lembro , acho q um HRV), e depois vejo que o dono é um assistente adminstrativo, que tem um salario muito menor que o meu. Ele me olha e se sente bem , afinal para ele é um sinal de sucesso na vida. Como se não bastasse a pressão da sociedade pela posse de coisas caras, também há a pressao por uma eterna ascenção na carreira. Conversando com um parente , me questiona pq nao estou fazendo mais especializações, indo a mais congressos etc pq fulano está num congresso nos EUA, outro está fazendo mestrado etc Ora,só eu sei o que eu já ralei, as especializações q eu fiz, o que eu conquistei – pq nao tenho direito de me satisfazer? As pessoas transferem a ansiedade delas para os outros, e eu diria que se vc não tiver essas questões claras na cabeça, vc cai facilmente nesse vórtex de busca incessante por consumir coisas caras e subir na carreira.. PS: tb estava pesnando justamente nisso, Lilian, vc deveria escrever um livro, poderia fazer uma compilação do que já escreveu aqui e fazer mais textos para o livro :)

    1. Adorei seu relato! E parabéns por pensar assim e agir de acordo!

      Eu tenho vontade de escrever um livro sim. Mas não sei o que seria mais útil: contar minha jornada pessoal ao FIRE ou fazer um guia prático. Estou pensando ainda!

      1. E se você fizer os dois? :) Eu pessoalmente AMO livros de não ficção que misturam relatos, pensamentos e sentimentos pessoais com pesquisas, informações e orientações mais objetivas (não é tudo junto e misturado, é tipo: começa com a experiência pessoal, o que faz o leitor empatizar com o autor e entender a importância daquela questão, e depois apresenta a parte de pesquisa/ciência/dados/orientações). O mais recente que li nesse estilo foi o “Stolen focus”, para dar de exemplo/ideia! Um outro nesse estilo é o “The antidote: happiness for people who can’t stand positive thinking”.

  3. Ameeeeeiiii. Eu me lembro MUITO bem dessa época mas não me lembrava que você tinha comprado um Louboutin!!! Meu Deus!! Dou até risada. Isso eh a anti-Lilian total. Enfim. Que bom que você superou tudo isso. As vezes da preguiça ver todo mundo de carrão, mas nessas horas nos lembramos de que o tempo é o bem mais valioso do mundo e nós conseguimos ser plenamente donas do nosso. Parabéns. Está lindo o texto. Concordo com o comentário de que deveria escrever um livro.

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