De que adianta se aposentar cedo e ter que …?

Ainda hoje, depois de mais de dois anos escrevendo e filosofando por aqui com vocês sobre consumismo, vez ou outra aparecem alguns desavisados no meu Instagram com o clássico comentário: “De que adianta se aposentar cedo e ter que andar de ônibus?”

Podemos começar essa reflexão pelo óbvio: por que andar de ônibus ainda é visto como sinônimo de vida ruim? De fracasso? De privação?

É claro que, no fundo, essa visão tem raízes no preconceito que temos com o transporte público brasileiro. Porque, veja bem, andar de metrô em Paris é cool, mas andar de metrô em São Paulo é visto como coisa de pobre.

Essa associação equivocada alimenta um modelo de cidade que valoriza excessivamente o carro em detrimento de outros meios de transporte. E isso tem consequências  negativas para todo mundo – amantes do carro e os “pobres”que andam de ônibus. A cidade fica mais feia e barulhenta, e até menos segura – afinal, ruas cheias de pedestres não são mais seguras do que ruas desertas?

Mas voltando ao ponto central deste post. A ideia por trás do comentário “de que adianta se aposentar cedo e…” revela um equívoco profundo sobre o que realmente significa viver bem.

Eu achava que isso era óbvio, mas pelo visto ainda preciso ressaltar: não, eu não me aposentei cedo para viver pior. Eu também quero uma vida melhor, como 100% dos seres humanos. A diferença é o que definimos como vida boa.

Como já cansei de escrever sobre isso sozinha por aqui, dessa vez trouxe a ajuda de três filósofos para reforçar meu argumento de que, talvez, aquilo que você considera uma vida boa seja apenas uma ilusão.

Eu já confundi uma vida boa com uma vida em que todos os meus desejos são realizados. Eu fui a perfeita boa aluna. Estudei demais na escola, passei em uma boa faculdade e vivi enfurnada nos livros no meu último ano da faculdade para conseguir uma boa colocação no concorrido exame da Anpec para entrar no mestrado. Depois disso, finalmente consegui trabalhar como economista no mercado financeiro, e meu grande projeto de vida até então estava concluído.

E foi então que senti na pele a famosa frase de Schopenhauer:

“O desejo pode nos humilhar de duas formas básicas: negando-nos a realização ou, pior, deixando que o realizemos.”

O filósofo alemão via o desejo como uma força incessante que nos mantém em um estado perpétuo de insatisfação. Passamos a vida correndo atrás de objetivos, acreditando que a felicidade está logo depois da próxima conquista. Mas, assim que alcançamos aquilo que tanto queríamos, percebemos que a satisfação é passageira, e um novo desejo surge para ocupar seu lugar.

E foi exatamente isso que aconteceu comigo. Eu havia cumprido todos os requisitos de uma trajetória bem-sucedida – boas notas, boas universidades, um bom emprego – e, ainda assim, o vazio permaneceu. A realização não trouxe paz, apenas abriu espaço para a pergunta incômoda: e agora?

Schopenhauer diria que essa é a natureza do ser humano, preso entre a dor do desejo não realizado e o tédio da conquista. E talvez seja por isso que tantas pessoas se desesperam diante da ideia de que alguém possa abandonar a corrida – porque, no fundo, todos sentem esse mesmo vazio, mas seguem correndo, esperando que a próxima linha de chegada seja, finalmente, a definitiva.

Mas se a lógica do desejo está fadada a nos frustrar, talvez a resposta não esteja em continuar correndo, mas em encontrar uma nova forma de existir – mesmo que isso signifique sair completamente da trilha e, quem sabe, andar de ônibus por aí.

Eu também já confundi uma vida boa com uma vida luxuosa. Quando finalmente atingi a fase adulta da vida, ganhava meu próprio dinheiro e não precisava mais me provar academicamente, eu me entreguei ao consumismo. Eu ganhava bem, tinha uma vida ainda relativamente enxuta e podia me cercar de luxos. Comprei bolsa Prada, sapato Louboutin, fiz uma viagem para Orlando com as amigas em que a mala foi vazia para voltar cheia de roupas novas. Reformei meu apartamento com arquiteta. Enfim, segui toda a cartilha da vida de luxo.

Mas aqui está o ponto: o fato de existir uma cartilha básica para as pessoas de classe média alta já deixa claro o quanto essa vida de luxos é uma vida não autêntica. 

O filósofo Theodor Adorno argumentava que o consumismo não é uma escolha individual, mas um produto da Indústria Cultural, que nos condiciona a desejar certos estilos de vida como símbolos de status e realização. “O poder da cultura de massa está em fazer as pessoas desejarem exatamente aquilo que as mantém presas.

O que parece ser um desejo pessoal – comprar uma bolsa de marca, reformar o apartamento com um projeto arquitetônico sofisticado – muitas vezes é apenas a internalização de valores propagados pela mídia e pela publicidade. 

Ou seja, eu não estava apenas comprando bens materiais, eu estava cumprindo um roteiro já escrito para mim – e não escrito por mim. 

E é aqui que mora o grande perigo. Ao invés de nos proporcionar liberdade e realização, essa lógica de consumo nos aprisiona. Trabalhamos exaustivamente para bancar um estilo de vida que, no fim, não nos pertence de verdade. Achamos que estamos escolhendo, quando, na realidade, estamos apenas seguindo um modelo pré-fabricado de felicidade – que, claro, sempre exige mais e mais consumo.

Foi só quando me dei conta disso que comecei a me perguntar: o que realmente faz sentido para mim? Se a cartilha da sociedade falhou tanto em me trazer satisfação, será que não era hora de rasgar o manual e criar minha própria versão de uma vida boa – mesmo que isso significasse abrir mão de algumas “conquistas” e, quem sabe, ter que andar de ônibus por aí?

Eu também já confundi uma vida boa com uma vida confortável. Eu também achava que vencer na vida significava uma casa limpa por terceiros, com um carro novo na garagem e comer todos os dias em restaurantes. Quem sabe, viajar de classe executiva nas férias.

O problema dessa visão é que ela se baseia em fragilidade. No livro Antifrágil, Nassim Taleb argumenta que o conforto excessivo nos torna vulneráveis, pois elimina os pequenos estresses e desafios que nos fortalecem. E aqui cabe a analogia perfeita com a musculação: o treino com peso rasga as fibras, e é justamente esse dano que faz com que os músculos se reconstruam mais fortes.

Uma vida confortável, protegida dos desafios, pode parecer desejável, mas, na prática, cria uma dependência perigosa de estabilidade e previsibilidade — coisas que o mundo real não oferece a longo prazo.

Quando estruturamos a vida em torno de conforto e luxo, criamos um sistema frágil, onde qualquer pequena turbulência — uma crise econômica, uma demissão, um problema de saúde — pode nos destruir. 

A verdadeira vitória na vida não é acumular conforto, mas construir uma estrutura que se fortalece com o inesperado. E para isso é fundamental conquistar a independência financeira. Eu abracei o caos na minha vida, e comecei a andar de ônibus por aí, em prol dessa independência. 

Então, voltamos à pergunta inicial: de que adianta se aposentar cedo e andar de ônibus?

A resposta é simples: adianta muito se você entende que liberdade vale mais do que status. Se você percebe que o luxo que te venderam como “vida boa” talvez seja só uma prisão dourada. Se você enxerga que o ciclo interminável de desejar, comprar, desejar mais um pouco e trabalhar sem parar para bancar tudo isso pode não ser sinônimo de felicidade.

A verdade é que o conceito de “vida boa” que tanta gente defende sem nem pensar talvez seja apenas um reflexo condicionado, um script que seguimos sem questionar. Eu já caí nessa armadilha. Mas hoje, depois de alcançar a independência financeira e ter tempo para pensar no que realmente importa, posso dizer com certeza: prefiro uma vida livre a uma vida cara.

Respostas de 9

  1. Souum FIRE que também anda de ônibus em SP. Quando estou no ônibus penso que talvez eu seja o único ali que poderia comprar o ônibus.

  2. Excelente texto Lilian, e acredito que as pessoas nunca vao conseguir fazer essa distinção. A ânsia de querer ter mais e mais sem uma reflexão profunda do porquê (e das implicações) é o status quo. Mas, fazendo um contraponto em relação ao exemplo específico do ônibus – há que se concordar que São Paulo nao reflete a realidade do transporte publico no resto do país : nenhuma outra cidade no Brasil tem uma rede de metrô tao extensa.. assim fico pensando que o carro muitas vezes nao é um “luxo” ou uma necessidade de mostrat status, mas um conforto que pode fazer toda a diferença, principalmente pra quem está na corrida e nao tem tempo pra ficar um tempao esperando no ponto

  3. Que curioso você utilizar um pensador da Escola de Frankfurt, com fortíssima influência do Marxismo, neste blog com forte viés capitalista e até mesmo liberal. Achei um malabarismo intelectual, rsrs, mas foi uma boa construção de raciocínio, afinal.

    Sobre os comentários no seu Instagram, sinceramente, o que esperar de um povo que tem como meta de sucesso ter uma moto cara para fazer barulho e uma casa com piscina para ter dor de cabeça?

    1. “Blog com forte viés capitalista”? Volta pro primeiro texto e relê tudo pq tenho a impressao que vc nao entendeu NADA

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *